Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sábado, 2 de janeiro de 2010

O primeiro dia útil


Sábado, 2 de janeiro de 2010
Por Ivan de Carvalho
Hoje é o primeiro dia útil de 2010. Implicitamente, o dia 1º de janeiro foi um dia inútil, embora vivido intensamente por tanta gente em todo o mundo. Essa história de dia útil certamente é nomenclatura imposta pela burguesia, convicta de que os dias de repouso, nos quais o proletariado não trabalha, são inúteis, porque não dão lucro, não lhes permitem apropriar-se da “mais valia” da qual tanto se valeu, em suas alopradas teorias, o sábio Karl Marx.
    Antes da burguesia inventar os dias úteis e os não declarados, mas considerados, inúteis, já foi diferente. Moisés fixou o sábado como o dia de repouso e sobretudo o dia dedicado ao Senhor, e assim, para os hebreus que resgatou do Egito, tratava-se do dia mais útil e mais importante, embora não fosse Moisés radical a ponto de considerar inúteis os outros seis dias da semana.
    Mais tarde, quando foi escrito o primeiro livro da Bíblia, o Gênesis, cuidou-se de registrar lá que Deus fez tudo em seis dias e descansou no sétimo. Daí que o sétimo dia, convencionado como sendo o sábado, seria pelos homens dedicado ao repouso e ao relacionamento com Deus. Estava aí explicada por escrito a lei mosaica, no particular.
    Mas as coisas acabaram não sendo tão radicais. O “jeitinho” brasileiro não é só nosso. A lei israelita, por exemplo, proíbe, no sábado, deslocamentos superiores a seis quilômetros a partir da residência da pessoa. Mas então inventou-se a casa fictícia. Hoje certamente teria sido a casa virtual.  Antes da 12ª hora de sexta-feira (6 h da tarde, quando começa o sábado judeu) um israelita podia levar algum alimento, água e qualquer coisinha mais e por seis quilômetros de sua residência. Era a casa fictícia. No sábado, nela chegando, podia deslocar-se mais seis quilômetros. Assim, enganando Deus.
    Mas talvez acertadamente. Porque extremismos não são bons companheiros. Isso mostrou Jesus quando curou alguém em um sábado. Houve questionamento de religiosos. E, depois de perguntar qual o pastor que, num sábado, não iria buscar uma ovelha desgarrada de seu rebanho, deu o cheque-mate: “Porque não foi o homem feito para o sábado, mas o sábado para o homem”. E, é claro, se Israel for atacado por seus múltiplos inimigos em um sábado, não aguardará o dia seguinte para defender-se. Os cristãos trocaram o sábado pelo domingo, porque foi este o dia da Ressurreição, e Maomé, chegando com sete séculos de atraso em relação a Cristo, conformou-se em dedicar a Allah a sexta-feira.
    E já que o espaço para este artigo está acabando (o Espaço, mesmo, só pode ser infinito, não há como conceber-lhe um limite) vale registrar o conceito da Teosofia para o Dia de Repouso, ou Pralaya, o dia do “Sê conosco”, quando todos são um e a Matéria é indiferenciada e sutil no seu mais alto grau. Antes do Universo nascer, a Matéria esteve em seu estado Pralaya por período igual ao que vai durar o Manvantara, o período de atividade universal e Matéria diferenciada (essa Matéria inclui a energia sutil dos espíritos). Quando o Manvantara (dia útil?) terminar, virá novo Pralaya – simbolizado pelo sábado dos israelitas, o domingo dos cristãos, a sexta-feira dos muçulmanos. E assim sucessivamente para sempre, mas sempre em evolução (Darwin não foi até aí).
    Eis porque essa conversa burguesa de “dias úteis” e, em contraposição, a imputação de inúteis aos outros dias é rematada e superficial tolice. Só serão inúteis se não usados corretamente.

Este artigo foi publicado originalmente na Tribuna da Bahia deste sábado.
Ivan de Carvalho é jornalista baiano.