Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

"Habeas Pinho"

Terça, 28 de dezembro de 2010
Jovens que faziam serenata numa madrugada de junho de 1955, em Capina Grande, na Paraíba, foram presos pela polícia. No dia seguinte foram liberados. Mas o violão foi apreendido. Recorreram então a Ronaldo Cunha Lima, recém-formado em Direito, também seresteiro, e que já naquele tempo mostrava sua veia poética. Cunha Lima foi tempos depois deputado estadual, prefeito de Campina Grande, senador, governador do Estado e deputado federal.

O jovem advogado peticionou em juízo um “Habeas Pinho”, requerendo do juiz a liberdade para o violão. Veja a seguir a petição em forma de poema, e também o despacho do juiz.

Senhor Juiz.
Roberto Pessoa de Sousa


O instrumento do “crime” que se arrola
Nesse processo de contravenção
Não é faca, revolver ou pistola,
Simplesmente, Doutor, é um violão.
 

Um violão, doutor, que em verdade
Não feriu nem matou um cidadão
Feriu, sim, mas a sensibilidade
De quem o ouviu vibrar na solidão.
 

O violão é sempre uma ternura,
Instrumento de amor e de saudade
O crime a ele nunca se mistura
Entre ambos inexiste afinidade.
 

O violão é próprio dos cantores
Dos menestréis de alma enternecida
Que cantam mágoas que povoam  a vida
 

E sufocam as suas próprias dores.
O violão é música e é canção
É sentimento, é vida, é alegria
É pureza e é néctar que extasia
 

É adorno espiritual do coração.
Seu viver, como o nosso, é transitório.
Mas seu destino, não, se perpetua.
Ele nasceu para cantar na rua
 

E não para ser arquivo de Cartório.
Ele, Doutor, que suave lenitivo
Para a alma da noite em solidão,
Não se adapta, jamais, em um arquivo
 

Sem gemer sua prima e seu bordão
Mande entregá-lo, pelo amor da noite
Que se sente vazia em suas horas,
Para que volte a sentir o terno acoite
 

De suas cordas finas e sonoras.
Liberte o violão, Doutor Juiz,
Em nome da Justiça e do Direito.
É crime, porventura, o infeliz
 

Cantar as mágoas que lhe enchem o peito?
Será crime, afinal, será pecado,
Será delito de tão vis horrores,
Perambular na rua um desgraçado
 

Derramando nas praças suas dores?
Mande, pois, libertá-lo da agonia
(a consciência assim nos insinua)
Não sufoque o cantar que vem da rua,
 

Que vem da noite para saudar o dia.
É o apelo que aqui lhe dirigimos,
Na certeza do seu acolhimento
Juntada desta aos autos nós pedimos
 

E pedimos, enfim, deferimento.

Veja a resposta do juiz, também com um poema:

Recebo a petição escrita em verso
E, despachando-a sem autuação,
 

Verbero o ato vil, rude e perverso,
Que prende, no Cartório, um violão.
Emudecer a prima e o bordão,
Nos confins de um arquivo, em sombra imerso,
 

É desumana e vil destruição
De tudo que há de belo no universo.
Que seja Sol, ainda que a desoras,
E volte á rua, em vida transviada,
 

Num esbanjar de lágrimas sonoras.
Se grato for, acaso ao que lhe fiz,
Noite de luz, plena madrugada,
Venha tocar á porta do Juiz.