Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Aprofunda-se a crise da dívida da Europa

Sexta, 26 de dezembro de 2011
De "Resistir.info"

por Richard D. Wolff*

Cartoon de Quino. No último fim de semana, a Fitch – a grande companhia de classificação que, com as suas duas companheiras, a Moody's e a Standard and Poor's, dominam o negócio da avaliação do risco de instrumentos de dívida – deu um passo altamente publicitado. Ela degradou a possibilidade de crédito das dívidas soberanas de muitos países europeus. Que espectáculo! Estas companhias de classificação distinguiram-se pelas suas risíveis imprecisões (para ser extremamente polido) nas avaliações dos riscos associados a títulos apoiados por activos. Aquelas avaliações contribuíram para a crise económica que estamos a atravessar. Agora supõe-se que o mundo esteja pendente – ao invés de se rir – dos seus relatórios de crédito.

Não há dúvida de que as dívidas da Europa – e as tensões sociais que giram em torno delas – são problemas. Governos a entrarem em colapso na Grécia, Itália e Espanha mostram isso, dentre outros sinais do óbvio. Degradações da dívida europeia feitas pelas companhias de classificação são como degradar a probabilidade de bom tempo quando todos nós já estamos a correr para fechar as janelas para impedir a entrada da chuva.


Pior ainda são os habituais relatos dos media e as discussões quanto à acção da Fitch. Eles mais uma vez estão cheios de lúgubres referências de passos que os governos europeus devem tomar para "satisfazer os mercados". Esta estranha abstracção metafórica – "os mercados" – é retratada como uma espécie de monstro Frankenstein que ameaça comer os filhos da Europa a menos que os pais apoiem programas de austeridade do governo. Esses programas de austeridade, naturalmente, já estão a fazer sofrer os pais e os seus filhos.


Vamos por um momento dar um passo atrás quanto à utilização ideológica – ou melhor, propagandística – da expressão. "Os mercados" é um dispositivo conceptual que serve para esconder e disfarçar aquelas corporações particulares que estão atrás e trabalham os mercados para perseguirem os seus interesses. A linguagem dos políticos e dos mass media faz isto aparecer como se a busca do auto-interesse daquelas corporações fosse operações maquinais de alguma instituição fixa inalterável. Precisamos lembrar que mercados, tal como todas as outras instituições, são invenções humanas compostas por uma mistura de aspectos positivos e negativos e abertas à mudança. Afinal de contas, os efeitos mistos dos mercados tornou-os objectos de profunda suspeição e cepticismo pelo menos desde Platão e Aristóteles que há milhares de anos criticaram os mercados como inimigos da comunidade.


Hoje os principais credores de governos europeus são bancos, companhias de seguros, grandes corporações, fundos de pensão, alguns outros governos (principalmente não europeus) e indivíduos ricos. Quando os políticos e os media falam da necessidade de governos europeus para "satisfazer os mercados", o que eles querem dizer é satisfazer aqueles credores. As influências principais entre aqueles credores são os grandes bancos que representam e/ou aconselham todos ou a maior parte dos restantes. Os grandes bancos europeus foram e são os principais receptores dos custos salvamentos efectuados pelos governos europeus desde 2008. Na verdade, aqueles salvamentos aumentaram gravemente o endividamento de governos europeus porque estes pagaram tais salvamentos através da tomada de empréstimos.



Os salvamentos funcionaram na Europa em grande medida tal como nos EUA. Bancos que haviam especulado gravemente em títulos apoiados por activos e seus derivativos associados até o fim de 2008. Quando tomadores de empréstimos (ex. devedores hipotecários nos EUA) incumpriam cada vez mais empréstimos a que estavam associados títulos apoiados por activos, os valores destes últimos entraram em colapso. Os bancos cessaram de confiar uns nos outros quanto ao reembolso dos empréstimos feitos entre si – o que é central para o sistema global de crédito – porque todos os bancos sabiam que todos eles possuíam enormes quantias de títulos apoiados por activos cujos valores haviam entrado em colapso. Cada grande banco temia que os outros – tal como ele próprio – pudesse ter de incumprir nas suas dívidas.


As transacções inter-bancárias cessaram e com isso produziram um "congelamento" de crédito ou "esmagamento". Nas economia capitalistas modernas, negócios, governos e consumidores tornaram-se todos mais dependentes do crédito do que nunca. Tal congelamento ou esmagamento ameaçava portanto um maciço não funcionamento económico (colapso).


A solução foi governos intervirem maciçamente para descongelar o sistema de crédito. Eles fizeram-no em múltiplas frentes simultaneamente, tão grave era a crise. Primeiro, governos emprestaram gratuitamente aos grandes bancos que não podiam tomar emprestado uns com os outros. Segundo, governos garantiram várias espécies de empréstimos e dívidas de modo a que bancos que temiam conceder empréstimos retomassem a operação. Terceiro, governos tomaram emprestado maciçamente a prestamistas privados – especialmente bancos – de modo a que estes tivessem uma saída segura e lucrativa para os seus fundos emprestáveis. Destas maneiras, como agente do povo, governos europeus descongelaram e relançaram um sistema de crédito privado em colapso com enorme despesa pública. Eles portanto permitiram a sobrevivência e a lucratividade contínua dos bancos e dos seus grandes clientes.


Durante os últimos 12 meses, aproximadamente, aqueles bancos e seus clientes – libertos pelos salvamentos dos governos de preocupações acerca de empréstimos uns aos outros – começaram a preocupar-se quanto aos seus empréstimos aos governos europeus. Eles temem uma coisa: públicos excitados e raivosos. O povo nas ruas pode não permitir que os seus governos imponham "austeridade". O povo pode não aceitar cortes do governo no emprego e serviços públicos básicos para poupar dinheiro e reembolsar credores que foram salvos a expensas públicas apenas um momento atrás.


Assim, os credores agora estão a pressionar governos para garantir a segurança da dívida nacional (para si próprios). A degradação da Fitch faz parte dessa pressão. As referências a "satisfazer os mercados" simplesmente disfarçam o processo totalmente ultrajante. O drama da crise aprofunda-se: a pressão dos credores sobre os governos aumenta políticas de austeridade que aumentam a oposição em massa que assusta os credores os quais aumentam a sua pressão sobre os governos...


As contradições condutoras deste ciclo vicioso agitam tudo na sociedade europeia e na economia ligada inter-ligada à Europa. Governos europeus temem os credores e temem o aumento das suas oposições internas à austeridade. Eles manifestam irritação contra a Fitch e outras companhias de classificação por tornarem o seu dilema pior. Mas não têm solução, inclinam-se a "satisfazer os mercados" e portanto prosseguem com a austeridade aos trancos e barrancos. Tal como animais congelados diante de faróis no desastre que se aproxima, os actores neste absurdo drama europeu emitem relatórios de crédito redundantes (Fitch), mantêm infindáveis e infrutíferas conferências e cimeiras (Sarkozy, Merkel et al.), crispam-se com ansiedade quando proliferam greves gerais e governos cambaleiam e caem. Enquanto isso, fantasmas como "os mercados" assombram as análises dos media e as declarações de políticos, o que serve principalmente para fragmentar e ocultar o que está a acontecer.

21/Dezembro/2011
[*] Professor emérito da Universidade de Massachusetts-Amherst e professor visitante no Programa de Graduação em Assuntos Internacionais da New School University, Nova Yok. Autor de New Departures in Marxian Theory (Routledge, 2006) e do filme documentário Capitalism Hits the Fan, www.capitalismhitsthefan.com . Sítio web: www.rdwolff.com .
O original encontra-se em http://mrzine.monthlyreview.org/2011/wolff211211.html

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .