Sexta, 16 de dezembro de 2011
Do site português ESQUERDA.NET
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos
entregou à justiça argentina um arquivo com mais de 130 fotografias de
corpos encontrados nas costas uruguaias, e que corresponderiam a vítimas
da ditadura militar argentina lançadas ao mar nos denominados “voos da
morte”. Artigo de Francisco Luque - Correspondente da Carta Maior em
Buenos Aires.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) entregou à justiça
argentina um arquivo com mais de 130 fotografias de corpos encontrados
nas costas uruguaias, e que corresponderiam a vítimas da ditadura
militar argentina lançadas ao mar nos denominados “voos da morte”. O
arquivo, que permaneceu confidencial durante 32 anos, é parte de um
dossier com imagens e relatórios redigidos por serviços de inteligência
uruguaios que dão conta da descoberta de corpos na zona de Laguna de
Rocha e que, presumivelmente, foram arrastados pelas correntes marinhas
até à costa uruguaia. Para a justiça argentina, dada a magnitude da
evidência, trata-se de uma das provas mais claras da existência dos voos
da morte.
Esta informação está registada no relatório “Observação in loco”, nome com o qual a CIDH denominou a visita que fez a Argentina entre 6 e 20 de setembro de 1979. Aquela visita e os relatórios redigidos na ocasião deram conta de modo contundente do plano de extermínio executado pelos militares argentinos – aglutinados na Escola de Mecânica da Armada (Esma) – e cujo ato bárbaro culminante foi o desaparecimento de presos políticos lançados vivos ao mar. O relatório também relata de maneira direta o drama que a Argentina vivia durante a ditadura em função da “ação das autoridades públicas e de seus agentes, e das numerosas e graves violações dos direitos humanos que ocorriam no país”.
As fotografias dão conta da crueldade com que atuavam os agentes da
ditadura: corpos com os pés e mãos amarradas, cordas feitas com cortinas
de persianas, queimaduras de cigarros, feridas, evidências de torturas e
orifícios de balas. Um corpo de mulher que parecia ter passado muito
tempo na água ainda mantinha as unhas de seus pés pintadas. Em alguns
casos, estão inteiros, mas comidos pela fauna marinha; inchados,
putrefatos, sem cabelos nem olhos. Noutros, parecia que o dano tinha
sido feito previamente.
Segundo os relatórios da inteligência uruguaia, a maioria dos corpos
apareceu com ataduras rústicas, ou com traços delas. Isso demonstraria
que as vítimas tiveram os pés e mãos imobilizados e, assim, não tiveram
possibilidade alguma de nadar e salvar-se após serem jogadas vivas nas
águas. Um relatório apócrifo sobre a descoberta de um corpo feminino,
feito em abril de 1976, assinala: “O corpo apresentava indícios externos
de violência: sinal de violação, provavelmente com objetos perfurantes,
fraturas múltiplas. Não há nenhum possível elemento de identificação. O
corpo foi extraído desnudo das águas e as impressões digitais obtidas
não trouxeram respostas positivas”.
Os primeiros relatórios datam de 1975. Entre os papéis encontram-se
mapas com os ciclos das correntes e indicam Buenos Aires como ponto de
partida. Estes dados permitem inferir que os corpos pertencem a
desaparecidos argentinos. Também se encontraram moedas e cédulas
argentinas e uma carteira de Santa Fé.
Os documentos foram entregues pelo secretário executivo da CIDH, o
argentino Santiago Cantón, ao juiz Sergio Torres, encarregado da mega
causa ESMA, que investiga os voos da morte. A comissão desconhece a
origem dos documentos. Só sabem que alguém os entregou em 1979. É
possível pensar que sejam resultado das imagens feitas por um
ex-marinheiro uruguaio, Daniel Rey Piuma, que desertou da força, pediu
refúgio no Brasil e difundiu as imagens por meio de uma organização
civil no início dos anos 80. Parte desta informação apareceu no livro
“Um marinheiro acusa”, publicado em 1988.
A entrega destes arquivos para a justiça argentina representa uma
mudança de paradigma no funcionamento da CIDH, já que é a primeira vez
que ela abre seus arquivos confidenciais para um processo judicial.
Embora esses documentos ainda não tenham sido corroborados, a justiça
argentina considera-os fundamentais não só para o caso dos voos da
morte, mas também porque pode originar um pedido para que o Estado
uruguaio desclassifique todos os documentos relacionados com a
descoberta de corpos na mesma época.
“Estes documentos podem servir para identificar pessoas e mostram a
existência das torturas, das violações, das ataduras. Até agora, as
provas dos voos da morte eram todas testemunhais. Estas [fotos] são
chave pelo seu caráter de imediatez, são um registo daquele momento”,
assinalou o secretário Santiago Cantón.
Estes documentos não são os primeiros que a CIDH entrega à justiça
argentina. Este ano, o juiz Torres viajou a Washington e analisou 60
caixas com documentos sobre denúncias recebidas pela Comissão durante a
última ditadura. Grande parte desse material foi digitalizado e já faz
parte do processo. Cantón explicou que, dado o tempo transcorrido, a
democracia na Argentina e a firme determinação da Comissão em colaborar
com as causas de direitos humanos, “é possível abrir muito mais
documentos”.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer