Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

O fenômeno da Choreia

Quinta, 22 de dezembro de 2011
Por Ivan de Carvalho
Este espaço é preferencialmente dedicado à abordagem de temas da política nacional, baiana e municipal – no último caso, com ênfase na política de Salvador, que geralmente envolve também a política estadual e eventualmente a política nacional, ou com enfoque em aspectos gerais da política nos municípios baianos.

            Mas não sou escravo e reconheço a liberdade que conquistei sem jamais sofrer resistência alguma – ressalvados os tempos da censura estatal que, espero, mas, devido a alguns maus sinais, sem garantir, não volte jamais – de abordar quaisquer temas, incluindo discos voadores, exobiologia, religião, saúde, relações de consumo, guerras e rumores de guerras, política internacional e ditaduras nacionais e internacionais, das quais o maior exemplo foi a URSS.

            Hoje abordo um desses temas excepcionais. Gostaria de registrar, para que não passe totalmente ignorado neste espaço, um dos espetáculos mais ridiculamente engraçados da Terra, pelo menos na parte já vencida deste século XXI – a morte do ditador Kim Jong-il.

            Não é a morte dele que é ridícula, ainda que estranha, pois ele sucedera a seu pai, Kim Il-sung, “Presidente Eterno” – condição que não deveria ter permitido a ascensão ao cargo, em nenhuma hipótese, do amado filho Kim Jong-il. A implacável indesejada das gentes também acabou levando este último, que já deixou, para ocupar-lhe o lugar, Kim Jong-un, mais um rebento dessa ditadura dinástica comunista, que em termos de dinastia acaba de superar a também dinástica ditadura comunista cubana. 

       Ridículo é que a morte do “Comandante Sempre Vitorioso de Vontade Férrea” haja praticamente resultado numa mudança do nome de seu país, que passou de Coreia a Choreia. Mas, como há sempre males que vêm para o bem, a nomenclatura política da península coreana pode sofrer uma simplificação naturalmente benéfica. Havia a Coreia do Sul e a Coreia do Norte, mas com esta passando agora a chamar-se Choreia, pode-se dispensar aquela distinção de “do Sul” e “do Norte”, algo irritante.


Haverá, doravante, se os choreanos forem inteligentes, simplesmente uma Coréia e uma Choréia, esta “sempre triste”, como diria Luiz de Camões, por ter perdido seu “Grande Líder”, seu “General Glorioso que Desceu do Céu”, seu “Político Assombroso” (Gasparzinho não se metia com ele), sua “Estrela Guia do Século XXI”, e sua “Mais Alta Encarnação do Amor Revolucionário Camarada”, desencarnada em hecatombe pessoal tão cruel, um infarto durante uma viagem de trem, versão oficial.


Mais ridículo ainda que a troca (ou pelo menos a perspectiva de troca do nome do país) foi o espetáculo mundial de choreio que as choreanas ofereceram ou encenaram (difícil saber) para o mundo.


Há uma tese segundo a qual o choro coletivo e cinematográfico era uma farsa, um expediente coletivo orientado pelo governo para mostrar que o ditador morto era amado por seu povo. E uma segunda tese, a de que o choro era voluntário, espontâneo, pois as pessoas queriam mostrar ao governo que estavam emocionadas ao máximo com a partida do Grande Líder, maneira segura de não sofrerem retaliações.


Eu discordo de ambas as teses. Acredito firmemente que o choreio foi sincero e franco. Imagino as criancinhas nascendo e crescendo a ouvir e ver nas ruas, em casa, nas raras casas estatais de venda de produtos de consumo, nas escolas – mediante cartazes, alto-falantes, rádios, televisão, que maravilha era terem suas vidas protegidas pela “Mais Alta Encarnação do Amor Revolucionário Camarada”. Anos a fio, sem nenhuma contestação, nenhum contraditório. Aí, quando o gajo morre, arranca lágrimas até das pedras mais insensíveis.
  
        Propaganda. Controle da mente. É isso a Choreia.
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Este artigo foi publicado originalmente na Tribuna da Bahia desta quinta.
Ivan de Carvalho é jornalista baiano.