Segunda, 2 de abril de 2012
Publicado originalmente no Correio da Cidadania
Escrito por Otaviano Helene*
Uma das características do ensino
superior brasileiro nas últimas várias décadas é a constante redução da
participação das instituições públicas na sua oferta: em 1960, cerca de 60% das
matrículas eram em instituições públicas; atualmente, elas são da ordem de 25%
e com uma tendência a continuar aumentando (veja gráfico).
Nas décadas de 1960 e 1970,
período marcado pelo regime militar, a participação do setor privado cresceu de
40% até pouco mais do que 60% das matrículas. Após uma década sem aumento dessa
participação, a privatização voltou a crescer após 1990, período marcado pela
expansão do neoliberalismo, continuando a aumentar ao longo da década seguinte.
O que aconteceu na década de
1980, quando a taxa de privatização permaneceu praticamente estável, ao contrário
de ter sido um sinal de que o setor público passou a ter uma postura mais
positiva, ilustra um dos muitos problemas que a privatização apresenta. A
década de 1980 foi marcada por uma profunda recessão econômica e,
consequentemente, redução de renda e aumento do desemprego. Como consequência,
aquela crise econômica afetou fortemente as possibilidades que as pessoas
tinham de arcar com as mensalidades escolares, afastando os estudantes, como,
obviamente, seria esperado. Esse fato ilustra bem um dos graves problemas da
privatização da educação: a educação, quando privatizada, ao invés de ser um
instrumento que possa ajudar a suportar uma crise econômica (fixando os jovens
por mais tempo no setor educacional e reduzindo, assim, a pressão sobre os
empregos) e a criar as condições necessárias para superá-la (preparando a força
de trabalho do país), passa a ser um fator a intensificação da própria crise.
Subsídios
Se “conseguimos” atingir a taxa
de privatização de 75%, é porque, ao longo do tempo, todos os níveis
governamentais contribuíram para isso, por meio de incentivos financeiros
diretos e indiretos, por meio de legislações e por deixarem espaço livre para a
atuação do setor privado.
No campo financeiro, tanto a
União como os estados e municípios têm contribuído, ao longo dos últimos 50
anos, cada um de sua forma, para o aumento da privatização. Essas subvenções
ocorrem na forma de isenções de taxas, contribuições e impostos (nacionais,
estaduais e municipais), abatimento de despesas com educação privada no imposto
de renda de pessoa física, repasses diretos de recursos públicos para entidades
privadas, pagamento das mensalidades dos alunos ou financiamento delas pelo
setor público, convênios com ONGs ligadas a instituições privadas, entre
diversas outras.
Como já estamos acostumados com
todas essas práticas, o que faz com que muitas pessoas as achem positivas, vale
a pena esmiuçar uma delas, talvez até a mais aceita como sendo adequada, justa
e necessária: o abatimento no imposto de renda de pessoas físicas das despesas
educacionais. Esse abatimento, que encontra enorme apoio nas classes mais
privilegiadas e mesmo reclamações por considerarem-na pequena, é, na prática,
uma distorção do que se esperaria de um sistema tributário ou de um subsídio a
uma atividade essencial.
Como o abatimento das despesas
educacionais ocorre antes do cálculo do imposto devido, quanto maior for a
renda de uma pessoa, maior será o abatimento do imposto. Vejamos. No caso de
pessoas com altas rendas, os governos subsidiam em 27,5% das despesas com
educação privada passíveis de serem abatidas. Já no caso de uma pessoa com
renda modesta, eventuais despesas educacionais podem ser subsidiadas em
proporções bem menores do que aqueles 27,5 % ou mesmo não terem subsídio
algum.
Uma espécie de Robin Hood às
avessas. Embora possa parecer que é o contribuinte que está sendo beneficiado,
quem de fato recebe aquela subvenção é a instituição de ensino. Por exemplo,
alguém de alta renda que tenha pago R$ 1.000 para uma instituição de
ensino, receberá do governo, na forma de abatimento de imposto, R$ 275,00;
ou seja, gastou, de fato, R$ 725,00, enquanto a instituição recebeu,
também de fato, os R$ 1000 pagos. Alguém de baixa renda que tenha gasto os
mesmos R$ 1.000 não terá redução alguma do imposto devido.
Em última instância, o abatimento
no imposto de renda é um subsídio indireto às instituições privadas de
educação. Embora este seja apenas um exemplo, mostra como as políticas de
transferência de recursos ao setor privado podem ser distorcidas. Uma redução
dos impostos por causa de despesas educacionais só seria justificável (embora
inadequado) se a redução fosse inversamente proporcional à renda, subsidiando
mais quem ganha menos, não da forma que é hoje. Evidentemente, não há nenhuma
dificuldade técnica para se fazer isso: se subsidiamos mais quem menos precisa
e menos quem mais precisa, é porque é para ser assim mesmo.
Legislação
Além das ações financeiras e
econômicas em favor da privatização da educação, há muitas ações no campo legal
que vão no mesmo sentido. Novamente, ao invés de detalhar as muitas formas com
que isso ocorre, vamos ilustrar algumas delas. Uma universidade é um tipo de
instituição cujas atribuições incluem, segundo a LDB (Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional), desenvolver a pesquisa científica e tecnológica,
conferir diplomas com validade nacional, criar e extinguir cursos e definir
seus currículos, desenvolver atividades de extensão universitária, entre outras.
Para isso, seria esperado que tal tipo de instituição tivesse, em seu quadro,
pessoas altamente qualificadas para aquelas atividades, o que no mundo
acadêmico significa doutores.
Entretanto, ainda que possa
parecer absurdo, a LDB não exige doutores no corpo docente de uma universidade:
a sutil redação daquela lei exige que pelo menos um terço do seu corpo docente
tenha “titulação acadêmica de mestrado ou doutorado”. A partícula “ou” revela a
real intenção do legislador: uma universidade, no Brasil, não precisa de
doutores! Essa redação é desrespeitosa e mesmo um escárnio, na medida em que a
palavra doutorado está apenas enfeitando o texto, sem nenhuma
consequência prática; se a frase acabasse em “mestrado”, estaria dizendo
exatamente a mesma coisa.
Além disso, exigir uma terça
parte dos docentes com determinada titulação não significa que eles venham a
exercer a terça parte das atividades desenvolvidas pelas instituições, pois
pode se atribuir a essa terça parte uma carga horária pequena, com apenas algumas
poucas horas semanais de trabalho.
E tem mais: para desenvolver
aquelas atividades, os docentes universitários deveriam contar com as
necessárias condições de trabalho, o que significaria, na prática acadêmica,
contratos em tempo integral e, preferencialmente, com dedicação exclusiva à
instituição. Mas a mesma LDB exige que uma universidade tenha pelo menos “um
terço do corpo docente em regime de tempo integral”. Ora, se a essa terça parte
do corpo docente for atribuída uma carga didática alta e/ou muitas tarefas
administrativas, a lei estará sendo cumprida, sem, de fato, garantir as
condições necessárias para a pesquisa e as atividades de extensão universitária
previstas pela LDB.
Evidentemente, essa legislação,
que não está respondendo a nenhuma necessidade real das instituições
universitárias públicas, favorece, e muito, as instituições privadas.
A ausência do setor público abre
espaço ao setor privado
Uma terceira forma de
favorecimento do setor privado ocorre por meio da restrição de vagas oferecidas
pelo setor público, o que abre o necessário espaço para o crescimento das
instituições privadas. Uma evidência dessa prática é que a falta de vagas
públicas nada tem a ver com as dificuldades financeiras do setor público,
diferentemente do que é dito com frequência. Tanto é assim que a privatização é
maior exatamente nos estados com maiores possibilidades econômicas e
orçamentárias e que maiores contribuições dão ao governo federal.
São Paulo é o caso exemplar:
exatamente nesse estado em que a ausência do setor público é mais marcante,
como mostra a tabela. A porcentagem de matrículas em instituições privadas em
São Paulo, 87%, é bem maior do que nos demais estados (69%). Mesmo quando
comparada com a população total ou com o número de concluintes do ensino médio,
a privatização paulista é maior do que nos outros estados por um fator dois,
como mostram os dados da tabela.
Essa maior privatização em São
Paulo é totalmente compatível com a hipótese de que a ausência do setor público
é estratégica, não fruto de uma impossibilidade econômica ou financeira.
Conseqüências
As políticas de privatização,
quando associadas com a distribuição dos cursos oferecidos pelas instituições
privadas pelas diferentes áreas do conhecimento, fazem com que alguns
indicadores da educação superior no Brasil estejam em completo desacordo com o
que se observa em outros países com possibilidades econômicas equivalentes ou
mais modestas que as nossas. Essa característica nos coloca em uma situação
bastante frágil.
Evidentemente, não se está
defendendo que haja uma competição entre os países, coisa que, ao contrário,
devemos combater. Entretanto, uma força de trabalho mal preparada, distribuída
de forma inadequada pelas diferentes áreas profissionais, e quantitativamente
insuficiente, fragiliza o país nos embates internacionais e compromete nossa
soberania. Consequentemente, não conseguimos sequer criar um ambiente que
permita lutar por uma relação mais saudável entre as nações e que priorize as
cooperações em lugar das competições.
Leia também os outros cinco
artigos da série:
*Otaviano Helene, professor no
Instituto de Física da USP, foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).