Segunda, 14 de maio de 2012
Da Pública
Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo
No dia 14 de maio mais uma onda de manifestações do Levante Popular da
Juventude se espalhou por 11 estados no Brasil, com o objetivo de expor
acusados de crime de tortura na ditadura militar.
As paredes e cadeiras brancas do sindicato, na zona norte de São
Paulo, ganham cores conforme os jovens vão se acomodando para a reunião.
“Tá começando agora a nossa descida da serra”, anuncia Bolero, rapaz
eloquente que segue falando sobre a segurança do grupo e sobre o que
cada comissão faria no ato que está para acontecer. “Quem da imprensa tá
sem carro?”, pergunta. Eu e mais três jornalistas vamos com Tati,
estudante de doutorado em Ciência Política na Unicamp e professora. Fora
do sindicato, a semana em São Paulo começava fria e cinza.
Uma hora antes, ainda sob o céu escuro, Edson Magalhães, o Junior,
porta-voz do Levante Popular da Juventude, conversa comigo. Ele me
explica que o Levante é a união de jovens urbanos ligados ao movimento
social. Vindos de Franca, Piracicaba, São Carlos, Bauru e Campinas,
estudantes de direito e ciências sociais e jovens do Levante e do MST.
Ali ao lado, na cozinha, se prepara café preto e pão com manteiga.
Junior conta que o objetivo da ação é expor o torturador. “A gente
não quer bater nele, não quer jogar nada nele”. Não é nada contra a
figura física do ex-militar. Ele me entrega o panfleto que mais tarde
seria distribuído na vizinhança da Rua Tereza Moura, no Guarujá. Nele,
as fotos de Frei Tito e da presidenta Dilma Rousseff que acusam Maurício
Lopes Lima, o dono do endereço, de os terem torturado.
No papel, o alvo é identificado como ex-chefe de equipes de
investigação na Operação Bandeirantes, a Oban, e no Doi-Codi em São
Paulo.
A inspiração para a iniciativa veio de ações parecidas feitas por jovens argentinos. “Vi um vídeo dos hijos
argentinos cinco anos atrás e achei fantástico”, conta Junior,
acrescentando que os protestos de militares contra a Comissão da Verdade
também motivaram o grupo a responder, a se manifestar.
Daniel Fogo, 16 anos e cabelos enrolados, fala com um sorriso tímido
que está ali porque um amigo o chamou. “Acho importante essa luta, é uma
pauta atual”.
Saindo de São Paulo em um trio de carros, o trânsito é lento.
Seguimos um gol verde com placa de Piracicaba. O clima no carro é ameno.
Tati, vestida com calça marrom de veludo, casaco rosa e usando óculos
de armação grossa, tentava antecipar a repercussão do evento. Mais tarde
eu contaria 70 pessoas na concentração: 15 da imprensa, entre
jornalistas e cinegrafistas. “Acho que vai dar boa repercussão”, opina
nossa motorista.
A velocidade aumenta. Chegando à Avenida do Estado, rumo a
Imigrantes, o trânsito flui melhor. “Que reação será que o Lima terá?”
especulamos. Surge o primeiro braço de mar em meio a densa neblina.
Nas curvas da estrada de Santos
Lima não precisou ser “descoberto”. Figura pública, o ex-militar tem
dado entrevistas na mídia sobre a época em que atuou na ditadura.
Matéria publicada no Portal Vermelho em 2010 diz que Lima “é apontado
pelo Ministério Público Federal (MPF), (…), como um dos responsáveis por
seis mortes ou desaparecimentos forçados, e por tortura a outras 20
(pessoas) em 1969 e 1970, no auge da ditadura militar brasileira
(1964-1985)”.
Em entrevista concedida ao jornal A Tribuna de Santos, Lima afirmou
ter exercido apenas funções investigativas. “Criminoso só fala em juízo.
Mas nós tínhamos uma pressa, porque os outros continuavam. Eram
verdadeiras quadrilhas de terroristas”, disse na entrevista. Seu nome
consta no livro Brasil Nunca Mais como torturador, e ele foi reconhecido
como tal pela presidenta Dilma Rousseff, que foi interrogada por ele
quando ela era militante do movimento VAR-Palmares.
Na estrada de Santos, o comboio de carros segue debaixo de chuva. No
meu colo, as letras que em alguns minutos ganhariam vida nas vozes dos
jovens empenhados em expor e abrir o debate sobre o passado negro da
ditadura militar no Brasil: “Chão, chão, chão quem é contra a repressão /
Pula, pula, pula quem é contra a ditadura”.
Aqui mora o torturador de Dilma
Do momento em que estacionamos em uma praça próxima ao edifício de
Maurício Lopes Lima ao fim da manifestação, o evento seguiu o
planejamento transmitido por Bolero aos companheiros.
Debaixo de muita chuva, a tinta vermelha que escreveu “Aqui mora o
torturador da Dilma” na calçada do número 36 da Rua Tereza Moura, no
bairro das Astúrias, se desmanchava em poças. Mas cada comissão
continuava a cumprir sua função. Com faixas estendidas, com a bateria em
ação, o esculacho ganhou coro com as crianças e adolescentes
da escola estadual em frente ao edifício de Lima. “Gaiola nele”,
berravam os pequenos de dentro dos muros escolares.
Além dos jovens, alguns representantes dos movimentos e ex-presos
políticos estavam no local. Amelinha Teles, presa política que foi
torturada na época da ditadura e representante da Comissão Familiar de
Mortos e Desaparecidos Políticos, estava lá. “Testemunhamos aquela época
e agora testemunhamos a juventude”, me falou.
A manifestação pegou de surpresa a senhorinha que esperava o táxi
para ir ao oftalmologista. Com sotaque italiano carregado, ela conta que
mora há 30 anos no edifício e sabia do passado do vizinho do
apartamento de cima, mas não quis se identificar por medo.
De repente, os jovens iniciam uma encenação de tortura. Ela se
emociona. Liga assustada para a filha avisando que talvez o táxi não vá
conseguir chegar e vai caminhando.
Quem para pra olhar é o senhor de 74 anos, Alberto Felipe, residente
nos Estados Unidos e de férias no Brasil. Achava que era alguém querendo
se jogar do prédio. Depois de se inteirar, conclui: “Os culpados que
venham à tona”.
A diretora, Conceição Rodrigues, 48 anos, e alguns funcionários da
escola estadual também se surpreenderam. “Nós vimos essa agitação na
porta da escola e viemos verificar”, fala. “Mas tem que apurar direito, a
gente não conhece bem essa história. Cabe à justiça tomar as
providências. A população pode se manifestar, mas cabe à justiça ver se
ele já foi punido ou não. A gente não sabe, né?”
A manifestação acaba de forma pacífica. Perto do final, dois carros
da polícia militar se aproximam. “Se vocês tivessem feito um comunicado,
nós poderíamos ter vindo fazer a escolta”, comenta o policial. Cercado
por jornalistas, o advogado que acompanhava a manifestação responde que
não haveria necessidade, “é um evento pequeno”.
Na volta à São Paulo, o gol verde parece ter sido o único que não
voltou inteiro. A lateral da lanterna esquerda estava despedaçada.
Acidente de percurso. Lembro-me dos trabalhadores que abordei no momento
em que passavam pela manifestação. Era o primeiro dia do trabalho
deles: “capinação”, me explicaram. Perguntei se sabiam que havia um
morador acusado de ser torturador que vivia ali. Disseram que não. “Mas
vocês sabem que houve tortura na ditadura?”. As cabeças balançaram em
negativa.
Ainda há muito o que fazer para que o passado seja passado para todos nós.
Jessica Mota, 20 anos, é estagiária da Agência Pública