Segunda, 14 de maio de 2012
De Rumos do Brasil
Proposta para um país melhorPor Paulo Passarinho*
A atual e aparente
queda de braço entre o governo e os bancos deve ser mais bem entendida,
antes de qualquer precipitada conclusão, conforme já alertei em artigo
anterior.
O último, ou melhor, penúltimo capítulo dessa história foi a
anunciada mudança nas regras de remuneração das cadernetas de poupança. O
governo apresentou a iniciativa como uma necessidade para a garantia do
processo de continuidade de redução da taxa básica de juros, a taxa
Selic.
Com a queda da taxa Selic, os fundos de renda fixa – que são
lastreados majoritariamente pelo rendimento dos títulos públicos –
tenderiam a perder competitividade em relação à remuneração das
cadernetas. Os títulos públicos, dentro desse raciocínio, renderiam
menos, por conta da redução da taxa Selic, e, por conseqüência, os
fundos passariam a pagar menos aos seus aplicadores. Os aplicadores em
fundos pagam, também, taxas de administração aos bancos que os gerenciam
(em geral, muito elevadas), além da tributação do imposto de renda, o
que acabaria por tornar o rendimento da poupança, isento de imposto de
renda, mais atrativo do que dos fundos. A cobrança do imposto de renda
em relação aos títulos públicos é isenta apenas aos fundos de
investimento estrangeiros, o que já é uma aberração.
A fuga de capitais dos fundos para as cadernetas, por sua vez, não
interessa ao governo, pois são através dos fundos que os bancos captam
recursos que são aplicados, em sua maior parte, em títulos públicos,
fundamentais para a rolagem da dívida pública.
Contudo, o mais curioso é que essa versão da história é apenas uma
meia verdade. A Campanha Auditoria Cidadã da Dívida Externa, em seu
boletim diário de acompanhamento das notícias veiculadas pela mídia
dominante, em sua versão do último dia quatro de maio, nos informa que
“no dia 3/5/2012, por exemplo, o governo emitiu R$ 1,5 bilhão em
títulos, pagando aos rentistas taxa de 10,7% ao ano, taxa esta que
somente cai quando o governo reduz drasticamente o prazo de pagamento de
tais títulos, conforme se pode ver na tabela da própria Secretaria do Tesouro Nacional”. O citado boletim lembra, também, que “segundo o último dado da Secretaria do Tesouro Nacional,
dos R$ 29 bilhões de títulos da dívida interna emitidos em março pelo
Tesouro, apenas R$1,8 bilhão foram indexados à Taxa Selic”. Além disso,
“apenas 27,52% do estoque da Dívida Interna sob responsabilidade do
Tesouro estavam indexados à Selic, com o custo médio da Dívida Interna
sob responsabilidade do Tesouro Nacional sendo de 11,47%, bem mais que a
Taxa Selic” (vide www.auditoriacidada.org.br)
Em suma: a vinculação da remuneração dos títulos públicos à taxa
Selic é hoje uma realidade para menos de 30% dos títulos emitidos pelo
Tesouro, e as taxas que vêm sendo oferecidas aos credores da dívida
interna mobiliária, nos chamados títulos pré-fixados, excedem à atual
taxa Selic, de 9% ao ano.
Em todo o caso, a mudança decretada para o cálculo dos rendimentos
das cadernetas somente será aplicada, caso a taxa Selic chegue a 8,5% ao
ano ou menos do que isso, nas novas cadernetas abertas ou para os novos
depósitos realizados, a partir do dia quatro de maio. Com a Selic fora
dessa faixa ou para as contas de cadernetas já existentes, a remuneração
continua a ser de 0,5% ao mês, mais a variação da TR – Taxa de
Referência, calculada pelo Banco Central.
Com isso, o governo tenta capitalizar a medida, destacando o
“respeito aos contratos” e procurando assegurar que os poupadores da
caderneta não sairão perdendo.
E para não esquecer o fio da meada do último capítulo dessa história,
os analistas do mercado financeiro já voltam a manifestar preocupações
com o ritmo da inflação e os seus riscos à estabilidade econômica. A
depender dessa turma, as novas regras de remuneração da poupança não
terão oportunidade de ser aplicadas, pois, como sabemos, para ela,
somente a elevação da taxa Selic é eficaz para se combater eventuais
elevações de preços em uma economia.
Nesse aspecto, o grande problema a ser considerado, levando-se em
conta que a maioria da clientela desse tipo de aplicação se constitui de
pessoas de menor renda, assalariados ou trabalhadores em condições de
fazer alguma poupança, é o modelo de economia – e de país – que
continuamos a construir, sob a hegemonia dos bancos e das
transnacionais.
Com o crescimento do emprego e da renda dos segmentos mais pobres,
observado nos últimos anos, há um enorme espaço de propaganda positiva
para esse modelo, iniciado nos anos 1990, mas de aparente sucesso apenas
no período a partir de 2003. De lá para cá, as raízes do modelo
periférico-liberal se aprofundaram. Avançamos nas aberturas financeira,
comercial, produtiva e tecnológica, com acentuada perda de soberania em
áreas vitais para o planejamento do nosso futuro. A desnacionalização da
economia e o grau de concentração dos negócios são gritantes; a
deterioração dos serviços públicos essenciais à população é absurda.
Privatizações, fraudulentas e perniciosas ao país, não somente não foram
revistas, como continuam a avançar. E a desmoralização e descrença da
população com o instrumento da política, como ferramenta para um mundo
melhor, é evidente.
Contudo, para muitos vivemos uma espécie de aurora de novos tempos.
A população, bombardeada por meios de comunicação de massa que
procuram difundir os supostos acertos da política econômica, parece não
perceber que as dificuldades do seu dia-a-dia são crescentes. De alguma
forma, o acesso aos crediários com altas taxas de juros e a
possibilidade de comprar bens de consumo a prestações criou uma espécie
de amortecedor contra as evidentes contradições vividas. Os centros
comerciais – os shoppings – e suas instalações parecem substituir
escolas de qualidade, centros de saúde adequados, transportes decentes.
As lideranças políticas procuram também estimular a ilusão.
Recentemente, em solenidade no Rio de Janeiro, onde Lula foi agraciado
com o título de doutor honoris causa, por cinco diferentes universidades
públicas do estado, o ex-presidente, ao abordar um dos maiores
problemas urbanos que temos vivido – a falência dos transportes públicos
e as dificuldades de mobilidade nos grandes centros – afirmou que é o
sonho de todo trabalhador ter o seu carro próprio, poder passear com sua
família e se divertir. Disso ninguém pode discordar. Outra coisa é
admitir como plausível, ou inevitável, um modelo de cidade onde o
trabalhador gaste quatro, cinco ou seis horas do dia, para o seu
deslocamento de casa para o trabalho e do trabalho para a casa.
Ou seja: uma liderança como Lula, político projetado pela esquerda e
com origem popular, contundente crítico do modelo dos bancos até a sua
chegada à presidência da República, não se constrange em jogar para a
platéia e apostar em um nível atrasado de consciência, para poder se
manter em evidência.
Nesta mesma solenidade, contudo, as fraturas do falso modelo exitoso
de governo, inaugurado a partir de 2003, se mostraram em diversos
momentos. Logo no seu início, com a atriz Camila Pitanga cobrando da
presidente Dilma o veto ao Código Florestal, recém aprovado pelo
Congresso, pela própria base governista. Ou na fala do reitor da UFF, ao
reivindicar reajustes salariais para os professores universitários e,
também, a destinação de verbas equivalentes a 10% do PIB para o Plano
Nacional de Educação. Ou mesmo no patético esforço de Lula para defender
e elogiar Sergio Cabral Filho, o corrupto e desmoralizado governador do
Rio, além de seu aliado.
A realidade, portanto, teima em se mostrar, mesmo em ocasiões onde o
farisaísmo se manifesta e o baixo nível de consciência e
responsabilidade com o nosso futuro se mostram sem pudores.
*Paulo Passarinho, economista, especialista em análise de políticas públicas, coordenou o extinto
grupo de economistas do PT no Rio de Janeiro, entre os anos de 1989 e
1998. Economista e apresentador do Programa Faixa Livre, veiculado pela rádio Bandeirante AM 1360, produz artigos
de opinião para diversos portais da internet.