Terça, 18 de junho de 2013
Por Osvaldo Coggiola*
Texto publicado originariamente no Correio da Cidadania
Depois da quarta jornada de protestos, em que uma manifestação de 20
mil pessoas em São Paulo foi atacada de modo selvagem pela PM (com um
saldo de 150 detidos e 55 feridos), fomos informados que “o comando do
PT está insatisfeito com a atuação do prefeito Fernando Haddad em
relação aos protestos contra a tarifa. E, temendo a nacionalização do
problema, decidiu intervir para evitar que contamine a imagem do partido
em todo o país”. Tarde demais, Lula. A presidente Dilma Rousseff foi
vaiada (três vezes) na abertura da Copa das Confederações. A
“contaminação” chegou a Brasília. Mais significativo talvez, Joseph
Blatter (presidente da FIFA e mafioso internacional, segundo Diego
Maradona, que alguma coisa aprendeu a respeito em Nápoles) pediu
respeito e foi vaiado mais ainda. O problema já está “nacionalizado”
(Rio de Janeiro, Goiânia, Natal e Porto Alegre tiveram manifestações,
além de São Paulo) e até “internacionalizado” (Blatter que o diga), com
piquetes solidários com os manifestantes brasileiros em várias capitais
do mundo (França, Alemanha, Portugal e Canadá). Os torcedores do Estádio
Mané Garrincha foram só os (circunstancialmente) últimos da lista. Até a
juventude do PT já declarou seu apoio aos protestos. E a viúva do Mané
(Elza Soares) cantou um novo samba: "R$0,20 eu não pago não". O Brasil
se põe em pé de luta, os jornais do mundo inteiro se fazem eco.
A PM “despreparada” (na verdade, preparada demais para sua função
precípua) desceu o sarrafo até em um jornalista que carregava vinagre,
declarado material para preparação de explosivos por um comandante da
corporação, numa linha de pensamento inaugurada há dez anos, quando
comandantes militares do superpreparado exército dos EUA no Iraque
exibiram tambores de inseticida como “armas de destruição em massa”,
aderindo, talvez de modo involuntário, à campanha ecológica mundial
contra o uso de agrotóxicos. Ninguém foi poupado, em São Paulo. Pessoas
desmaiando, gritaria, centenas de homens e mulheres presos e feridos
gravemente, inclusive idosos e crianças. “Segurança”. E já nos
informaram também que o principal saldo da Copa das Confederações, da
Copa 2014 e da Olimpíada 2016, além das vitórias brasileiras, claro,
será a institucionalização dos “novos esquemas de segurança”...
O MP pediu 45 dias de trégua para se chegar a um acordo (R$ 3,10?).
Os administradores estatais do partido de número 45 já anunciaram que,
trégua ou não, não haverá cessar fogo da parte da corporação
militar/estatal dotada de armas calibre 45. Fernando Haddad, exemplo
perfeito do tecnocrata petista que cresceu à sombra de cargos
administrativos, obtidos a cavalo do esforço de milhares de militantes
populares na década de 1980 (e dos resistentes contra a ditadura nas
décadas de 60 e 70), declarou, desde a inspiradora Paris, que aceitaria
sentar para discutir e negociar, mas sem abrir mão dos R$ 3,20. Doutor
(e docente) em Ciência Política pela USP, onde será que aprendeu o
sentido das palavras “discussão” e “negociação“? A longa licença para
cargos comissionados parece tê-lo feito esquecer noções básicas de
vestibular.
Sentado ao seu lado estava o governador do estado, que meteu o
bedelho nos assuntos metropolitanos e deu carta branca para a PM
estadual atuar, como se seu partido não tivesse perdido as eleições
municipais, e que demonstrou que leva bem a sério sua filiação à Opus
Dei, ao declarar os manifestantes “vândalos”, para honra retroativa do
nobre e pagão povo guerreiro das estepes europeias. Já o governador de
Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB), qualificou as manifestações de
”políticas”, e invocou sua condição de ex-militante do Partido Comunista
para justificar a repressão. Ele sabe das coisas, vejam só. No Rio,
todos os usuários do metrô estão sendo submetidos a revistas policiais
ex-comunistas.
Desde as páginas da Folha de S. Paulo (e de outros jornais
brasileiros que compram sua coluna), jornal que, como de hábito, tomou
seu tempo para mudar o qualificativo de “vândalos” pelo de
“manifestantes”, Elio Gáspari também incursionou pelo campo
histórico/antropológico, qualificando os enfrentamentos nas ruas
paulistanas de “luta entre canibais e antropófagos”, ignorando que os
primeiros são só uma variante dos segundos. A luta entre a tribo
caribenha que usava esse nome e os colonizadores europeus concluiu na
aniquilação total desse povo, em razão declarada de 100x1 pelos
evangelizadores espanhóis (100 canibais mortos para cada espanhol idem),
os quais, depois de realizado o massacre, cristiana e civilizadamente,
não os comeram.
No início da manifestação de quinta-feira 13, frente ao Teatro
Municipal, tudo estava pacífico, exceto pelas revistas feitas pelos
policiais prendendo qualquer um que estivesse com algo que considerassem
suspeito, inclusive vinagre. Muitos manifestantes distribuíam flores
entre as ativistas e à própria polícia. Mas havia muitos de “P2”,
policiais disfarçados, entre os manifestantes. A marcha seguiu
organizada, sem qualquer violência; quando os manifestantes já
caminhavam havia cerca de 30 minutos, a palavra de ordem era: “sem
violência”, ou seja, sem provocações. Quando a manifestação chegou à
Praça Roosevelt, a Tropa de Choque irrompeu pela parte da frente do ato e
outra parte por trás, encurralando os manifestantes. A Polícia Militar
(PM) começou a reprimir de forma violenta e generalizada. A tropa de
choque deu tiros e atirou contra a multidão: bala de borracha, gás de
pimenta e bombas de gás lacrimogêneo. A repressão generalizada durou
cinco horas, aterrorizando também os populares que passavam pela região.
Nem os jornalistas identificados se salvaram: sete repórteres da Folha de S. Paulo
ficaram feridos, incluindo uma jornalista que feriu um olho com o tiro
de uma bala de borracha. Os estudantes que saíam de uma faculdade eram
revistados um a um. Alguns poucos tentaram improvisar, como defesa,
barricadas de sacos de lixo, nas quais se ateava fogo. A “violência” dos
manifestantes não passou disso. No mesmo dia 13, Rio de Janeiro também
parou e teve manifestações contra o seu próprio aumento da tarifa.
R$ 0,20? Uma nova “revolta do vintém”? Que seja. Já foi (bem) dito
que a revolta, agora, é por muito mais: pela dignidade, pela juventude,
pelo direito democrático a manifestar na rua (existe outro lugar?). Mas é
também por 0,20. Ou por mais. R$ 0,20 multiplicado por milhões,
diariamente, numa metrópole de 19,2 milhões de habitantes. Nos últimos
15 anos, o custo da passagem de ônibus triplicou. Quem recebe um salário
mínimo em São Paulo e utiliza um ônibus e um metrô para ir e retornar
do trabalho tem um gasto que equivale a quase 27% de sua renda, e passa
mais três horas por dia em meios superlotados, isto é, um mês por ano.
0,20 foi a gota d’água (pesada). Afinal, foram uns 0,20% a mais de matéria sobre antimatéria os que provocaram o big bang.
R$3,20 equivalem a US$ 1,50. Passagens mais caras do que no “Primeiro
Mundo”. Em Roma, por exemplo, qualquer cidadão (ou turista) tem direito a
um passe mensal de 30 euros (R$ 80), para usar qualquer meio de
transporte público (ônibus, trem, metrô). Noventa viagens por mês (três
por dia) custam menos de R$ 0,90 cada. Os estudantes (de qualquer nível) têm direito a um passe anual,
em que essa quantia cai para menos da metade. Mas, claro, são
estudantes europeus; não são estudantes, trabalhadores ou jovens de
periferia brasileiros. Que têm, como se sabe, um poder aquisitivo muito
maior.
A grande imprensa achou um arcano a destrinchar: a identidade do
Movimento Passe Livre (MPL), no qual é contabilizada a presença de
alguns partidos (de esquerda) conhecidos, e de outras siglas menos
conhecidas (ou simplesmente desconhecidas). Plinio de Arruda Sampaio,
único político midiático que teve a honra de estar presente na
manifestação do dia 13, apontou que “quem faz vandalismo é um grupo
anarquista”, uma associação duvidosa de dois adjetivos. Um jornalista do
Metrô, jornal que, como outros, é subversivamente distribuído
de modo gratuito (se há jornais gratuitos, por que não ônibus gratuitos
também?), chegou a elencar a presença da LER, “Liga da Estratificação
(sic) Revolucionária”.
Atualização urgente, vai precisar cada vez mais.
O Movimento Passe Livre, principal articulador dos protestos, teve
sua origem em uma revolta popular espontânea na cidade de Salvador, em
2003, a “Revolta do Buzu”. Estendeu-se nacionalmente, protagonizou a
“revolta da catraca” em Florianópolis, conheceu fortes debates políticos
internos. A força da mobilização juvenil assustou uma parte dos
governos das prefeituras, a ponto de várias cidades abaixarem as tarifas
(Campinas), ou obedeceram decisão judicial nesse sentido (Goiânia). O
movimento já tem dez anos de história. No Fórum Social Mundial
de Porto Alegre, em 2005, ”institucionalizou” sua organização em torno
de ir e vir na cidade como direito básico que deve ser assegurado pelo
poder público, assim como a educação e a saúde, reivindicando a mudança
do modelo de transporte, sob a forma de concessões a empresários
privados, para um modelo público. O que exigiria, como outras
transformações igualmente necessárias (a remodelação da cidade e do
espaço), atacar o atual regime social (capitalista).
Logo de cara, exige discutir a espantosa dívida de municípios e
estados (R$ 177,5 bilhões, só a do estado de São Paulo, ou mais de 150%
de sua receita fiscal) e seus beneficiários (os tubarões financeiros), o
controle público dos lucros espantosos das empresas adjudicatárias do
transporte urbano, sem falar no orçamento das forças de repressão, em
primeiro lugar a PM. Mas não é nada disso que discutem as siglas que
todo mundo conhece. Os jovens que lutam pelo passe livre iniciaram uma
virada política no país; 35 grupos de vários estados convocam a
sociedade para participar de marchas nesta semana. Além das capitais já
mobilizadas, estão previstas manifestações em Belém (PA), Viçosa (MG),
Juiz de Fora (MG), Bauru (SP) e Foz do Iguaçu (PR) no mesmo dia. No
exterior, haverá protestos solidários em Bruxelas (Bélgica), Chicago
(EUA), Berlim (Alemanha), Dublin (Irlanda), Cambridge (EUA), Nova York
(EUA), Montreal (Canadá), Boston (EUA), San Diego (EUA), Los Angeles
(EUA). Já não era sem tempo. O inverno brasileiro está acabando: já se
sentem no ar os cheiros da primavera.
Osvaldo Coggiola é cientista político.