Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A "barbárie antidemocrática" de cada um ou quem atirou a primeira pedra. Antes de criminalizarem os jovens rebelados os governos deveriam avaliar seus próprios desatinos

Quinta, 31 de outubro de 2013

O comandante da tropa de repressão saiu de sua condição para ir laçar
pessoalmente uma "vândala" num ambiente de violência compartilhada,

 em que a PM exibiu com garbo sua truculência incontrolável.
(CLIQUE NA IMAGEM PARA AMPLIÁ-LA)
 Pedro Porfírio
Acuada por cobranças implacáveis, atormentada pelas sombras do passado e preocupada principalmente com a vulnerabilidade do Estado repressivo, a presidenta Dilma Rousseff classificou como "barbáries antidemocráticas" as depredações ocorridas em São Paulo, durante manifestação pelo passe livre no transporte público da cidade. Via twitter, a presidente prestou solidariedade ao coronel Reynaldo Simões Rossi "agredido covardemente por um grupo de  black blocs".
"Agredir e depredar não fazem parte da liberdade de manifestação. Pelo contrário. São barbáries antidemocráticas. A violência cassa o direito de quem quer se manifestar livremente. Violência deve ser coibida", escreveu Dilma na rede social; A presidente cobrou das forças de segurança "a obrigação de assegurar que as manifestações ocorram de forma livre e pacífica".
Ninguém de sã consciência aplaude a explosão violenta da indignação juvenil nas ruas das cidades brasileiras. Mas a todos os que ainda pensam livremente impõe-se a pergunta elementar:
por que chegamos a esse tipo de manifestação desconectada das gôndolas alegóricas que singram mansas as águas turvas de um mar de lama?
Até junho passado, o descontentamento e as frustrações  de milhares de jovens não haviam transposto os muros escolares e os guetos marginalizados. Não fosse um coquetel de diabruras de um sistema hegemonizado por  um poder econômico insaciável e a repressão descontrolada da PM ninguém teria atirado a primeira pedra, alvejando prioritariamente as vitrines dos bancos, senhores absolutos de todos os podres poderes, fontes inesgotáveis de corrupção e beneficiários necessários  das peripécias governamentais ao longo de décadas.
Foi preciso a exposição da cumplicidade subserviente de prefeitos na relação delituosa com as máfias dos transportes, que a todos subornam, para que as ruas fossem retomadas por seus legítimos donos. Já não dava mais para sufocar o grito que estava parado no ar.
Primeiro, uns. Depois, outros. Em dias, a cidadania inteira se tocava de sua força e de sua responsabilidade. Um mar humano invadiu os palácios e os covis numa pungente explosão de efeitos apocalípticos.  Era uma onda de calouros da revolta que se espalhava pelos quatro cantos produzindo um recado cristalino: basta de toda essa farsa fermentada pelas farinhas do mesmo saco que simulavam conflitos para escamotear a uníssona submissão a um modelo econômico excludente, com viés compensatório vicioso, que alcança todas as camadas sociais, opera uma sensação canastrona de boa semeadura, deixa milhões de jovens sem ter onde enfiar seus canudos de papel, criminaliza a odisseia dos anciãos, mantém intactas as estruturas da opressão selvagem  e torna a sobrevivência digna uma utopia obsoleta.
Os próceres dos podres poderes fingiram que ouviram o clamor das ruas. Fingiram, apenas, da boca pra fora. Ao contrário, porém, trataram de novas artimanhas para manter intacto o sistema da injustiça, dos privilégios e da impostura.
Muitos dos que saíram da inércia para a pugna eloquente das ruas convenceram-se da inutilidade dos audazes protestos.  Voltaram para o recinto do lar com o gosto amargo da frustração. Perceberam à primeira vista a armadura que blinda com chumbo grosso os interesses mais sórdidos e o desprezo pelo drama das maiorias, condenadas ad eternum a dorsos das elites gananciosas.
Mas outros, não. Não eram muitos, mas eram tantos que poderiam continuar abalando a rotina conservada na salmoura da chacina social. Esses tantos entenderam o protesto pela via do confronto quixotesco. Armados de paus e pedras decidiram enfrentar os fuzis com a flama de seus atos beligerantes estabanados.
Independente da aparente inconsequência e indiferentes ao desconforto de suas ações melindrosas, esses grupos diversos, de variados matizes, incorporaram o sentimento do inconformismo ante o cinismo dos detentores dos poderes, que só pensam em seus mesquinhos interesses menores.
Antes de censurarem a "barbárie antidemocrática" desses jovens insistentes devem as autoridades de todos os entes e de todos os podres poderes olhar os próprios umbigos. O que fizeram de bom depois das manifestações mansas e pacíficas de  um povo bravamente insatisfeito?
Até mesmo o episódio que envolveu esse coronel soa como uma grosseira provocação. Estaria na estratégia da repressão o comandante ir laçar pessoalmente e sem cobertura dos subordinados uma vândala cercada de parceiros da mesma indignação?
O que vemos, lamentavelmente, é que o aparato repressivo, a partir da autoridade maior, segue a mesma cartilha  dos idos abominados. Não seria também uma barbárie de alto teor explosivo a operação de guerra montada na Barra da Tijuca para proteger o leilão da maior reserva petrolífera do país?
Barbárie é em si o próprio leilão do poço suculento de Libra, uma renúncia suicida ao poder decisório do Brasil sobre suas riquezas estratégicas. O petróleo é, aliás, o mais aberrante cenário das barbáries mais criminosas: da míope privatização das jazidas ao jogo sujo de mentiradas repetidas, como o blefe do Eike Batista e o anúncio da autossuficiência há anos, tudo é farsesco nesse trilionário ambiente de golpes e falcatruas.
Ao ver da lucidez sobrevivente, há, sim, uma intercomunicação de barbáries. O governo possível que temos hoje se esmera em deprimentes capitulações, seguindo s pegadas dos antecessores neoliberais: além da trama petrolífera, frustra-nos com a privatização dos aeroportos lucrativos (os deficitários, 85%,  ficarão por conta do contribuinte), a inviabilização da aviação comercial brasileira, as privatizações dos melhores portos e das rodovias mais rentáveis  o que nos expõem a uma bitributação) e até a paulatina desnacionalização do bicentenário Banco do Brasil.
Aqui, por estas plagas cariocas, um prefeito descompensado e leviano está gastando R$ 10 bilhões (que faltam à educação) numa obra inconsequente de perigosa aventura imobiliária, que inclui a precipitada demolição de um elevado de 7 Km que liga os dois grandes eixos viários da cidade e retira o trânsito do tumulto urbano. Esse desatino bárbaro tem por pretexto dar visibilidade aos espigões que a cabeça desmiolada do prefeito imagina para uma área engolfada que não suporta adensamento e que seria uma zona de trânsito paralisado se alguns aventureiros lá se instalarem em prédios de 50 andares.
É muito fácil criminalizar a revolta juvenil, pois cada vitrine quebrada é um condimento a temperar a paranoia cristalizada.
Difícil é fazer os donos deste Brasil já não tão brasileiro a buscarem nas entrelinhas da barbárie das ruas os sintomas de uma nação sem rumo, sem eira nem beira, sem autoridade moral sequer para o confronto com a espionagem agressiva, que opera atos de guerra  que ferem mortalmente a soberania de um país e o tornam demasiado vulnerável ao domínio externo.
Para falar de barbárie das ruas forçoso é entendê-la como erupções pútridas de um organismo contaminado por todas as variáveis de barbáries. Especialmente as dos podres poderes, que por regra sempre atiram  a primeira pedra.
 
Fonte: Blog do Pedro Porfírio