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(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Controle irrefreável

Quarta, 18 de dezembro de 2013
Por Ivan de Carvalho
      Projeto de resolução antiespionagem elaborado pelo Brasil e a Alemanha será levado hoje ao plenário da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em Nova York, exatamente em um momento de agitação em torno do episódio das denúncias de Edward Snowden contra a bisbilhotagem cibernética da NSA, a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos, que tem o comando, no país, do amplo esquema mundial de monitoramento, análise e armazenamento de dados, que envolve ainda outras agências federais norte-americanos e serviços similares do Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia.
      A expectativa geral é de que o projeto de resolução seja aprovado pela grande maioria dos Estados-membros da ONU, o que deverá lhe dar certa “força política” para ser usada como argumento de pressão diplomática e de influência junto à opinião pública mundial em presentes e futuros debates e negociações. No entanto, se aprovada, a resolução não é vinculante, não obriga qualquer Estado-membro, tampouco (o que não é o caso) algum Estado que não seja membro. Seu valor é meramente político e “moral”, embora, ao se tratar da ONU, convém não envolver a moral, raramente ou quase nunca compatível com essa organização.
      Mas, apesar dessas fraquezas intrínsecas ao projeto de resolução articulado pela dupla teuto-brasileira (uma dupla que estrilou por causa do sistema de espionagem comandado pela NSA), há um fato interessante. Ele é levado à Assembleia-Geral da ONU em um momento de especial agitação em torno do episódio Edward Snowden.
O fato principal é que um juiz federal de Washington, em sentença, avaliou que o armazenamento de grandes quantidades de registros telefônicos feito pelo NSA viola o direito à privacidade e pode ser considerado inconstitucional. A decisão foi tomada na segunda-feira e envolve uma parte da bisbilhotagem da NSA – a telefônica. Da decisão, tomada no âmbito do tribunal distrital federal, cabe ainda recurso, mas se for mantida pode levar à proibição do armazenamento indiscriminado de dados de telefonemas privados. O caso não envolve a espionagem da NSA quanto aos dados de Internet. Foi a primeira sentença da Justiça norte-americana sobre o assunto. “Não posso imaginar uma invasão mais arbitrária e indiscriminada do que este armazenamento de dados pessoais sobre praticamente todos os cidadãos”, afirmou o juiz Richard Leon na sua sentença de 68 páginas, referindo-se a bisbilhotagem telefônica.
Mesmo admitindo recurso, que o Departamento de Justiça está examinando, a decisão cria dificuldades ao governo americano, pois Edward Snowden, que trabalhava para a NSA e revelou ao mundo o que o mundo já sabia, mas fingia que não, enquanto ninguém assumia as informações, vinha sendo acusado de traidor e agora passa, segundo o sentido da sentença do juiz Richard Leon, a ser o denunciante de práticas insconstitucionais e violadoras dos direitos humanos – no caso, o direito à privacidade. A decisão decorreu de queixa de dois cidadãos contra o governo dos Estados Unidos. Segundo eles, o governo violou informações pessoais por meio do fornecimento de dados de uma empresa de telefonia à NSA. O governo argumentou que o monitoramente de informações não é inconstitucional, por se tratar de questão de segurança nacional, mas não provou. Deverá ficar impedido de ter acesso (pelo menos, legalmente) aos chamados metadados (dados sobre uma comunicação, excetuado o conteúdo) e, só terá acesso a estes (como ao conteúdo de comunicações privadas) com prévia autorização judicial, como prevê a legislação americana, assim como a brasileira.
O juiz Richard Leon disse que a partir do desfecho deste caso, juízes e tribunais do país “certamente” passarão a buscar o “equilíbrio” entre interesses de segurança nacional e o direito à privacidade.
Bem, isso é o que está posto. Mas peço licença ao leitor para desacreditar de que as denúncias de Snowden e as barreiras representadas pelo projeto de resolução que a pode aprovar hoje e a sentença do juiz Richard Leon, adotada ontem, bem como outras que venham a ocorrer no mesmo sentido, sejam suficientes para inverter a tendência – que considero irrefreável nesta civilização – ao monitoramento e controle das pessoas.
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Este artigo foi publicado originariamente na Tribuna da Bahia desta quarta.
Ivan de Carvalho é jornalista baiano.