Segunda, 2 de dezembro de 2013
Lori Wallach
Le Monde Diplomatique
Le Monde Diplomatique
É possível imaginar as multinacionais levando aos tribunais os
governos cuja orientação política tivesse por efeito diminuir seus
lucros? É concebível pensar que elas podem exigir – e conseguir! – uma
compensação generosa pela perda de rendimentos causada por um direito do
trabalho muito restritivo ou por uma legislação ambiental muito
espoliadora? Por mais improvável que possa parecer, esse cenário não é
novo. Ele já aparecia com todas as letras no projeto do Acordo
Multilateral de Investimentos (AMI), secretamente negociado entre 1995 e
1997 pelos 29 países-membros da Organização para a Cooperação e o
Desenvolvimento Econômicos (OCDE).
Divulgada in extremis, a cópia despertou em vários países
uma onda de protestos sem precedentes, forçando seus promotores a
mandá-la para a gaveta. Quinze anos depois, ei-la de volta em grande
estilo, com uma nova roupagem.
O acordo para criar uma Parceria de Investimento e Comércio
Transatlântica (TTIP, na sigla em inglês), negociado desde julho de 2013
pelos Estados Unidos e pela União Europeia, é uma versão modificada do
AMI. Ele prevê que as legislações em vigor em ambos os lados do
Atlântico estejam em conformidade com as normas de livre-comércio
estabelecidas pelas – e para as – principais empresas europeias e
norte-americanas, sob pena de sanções comerciais ao país transgressor ou
de uma reparação de vários milhões de euros em favor dos queixosos.
PRIVILÉGIOS
De acordo com o calendário oficial, as negociações só devem chegar a
um resultado após um prazo de dois anos. O acordo combina,
aprofundando-os, os elementos mais nefastos das parcerias efetivadas no
passado. Se tivesse entrado em vigor, os privilégios das multinacionais
assumiriam força de lei e amarrariam as mãos dos governantes.
Impermeável às alternâncias políticas e às mobilizações populares, ele
se aplicaria pelo bem ou pela força, já que suas disposições só poderiam
ser alteradas com o consentimento unânime dos países signatários.
Ele replicaria na Europa o espírito e as modalidades do modelo
asiático, o acordo de Parceria Transpacífica (Trans-Pacific Partnership,
TPP), que está sendo adotado em doze países depois de ter sido
ardorosamente promovido pela comunidade empresarial norte-americana.
Juntas, a TTIP e a TPP formariam um império econômico capaz de ditar
suas condições para além de suas fronteiras: qualquer país que buscasse
estabelecer relações comerciais com os Estados Unidos ou a União
Europeia seria forçado a adotar tais e quais as regras que prevalecem no
mercado comum deles.
TRIBUNAIS ESPECIAIS
Como almejam liquidar porções inteiras do setor não comercial, as
negociações sobre a TTIP e a TPP são realizadas a portas fechadas. As
delegações norte-americanas têm mais de seiscentos consultores
comissionados pelas multinacionais, que dispõem de acesso ilimitado aos
documentos preparatórios e aos representantes do governo. Nada deve ser
filtrado. Foi dada a instrução de deixar jornalistas e cidadãos fora das
discussões: eles serão informados em tempo hábil, na assinatura do
tratado, quando será tarde demais para reagir.
Em uma explosão de sinceridade, Ron Kirk, ex-secretário do Comércio
dos Estados Unidos, defendeu as vantagens de “preservar certo grau de
discrição e confidencialidade”. Na última vez que foi publicada uma
versão de um acordo que estava sendo negociado, apontou Kirk, as
negociações fracassaram – uma alusão à Área de Livre Comércio das
Américas (Alca). Porém, a senadora Elizabeth Warren retruca que um
acordo negociado sem nenhum exame democrático nunca deveria ser
assinado.
SIGILO TOTAL
O imperioso desejo de ocultar a preparação do tratado EUA-UE da
atenção do público é facilmente compreensível. É melhor usar o tempo
para anunciar ao país os efeitos que ele vai produzir em todos os
níveis: desde o topo do governo federal até os conselhos municipais,
passando pelos governos e pelas assembleias locais, as autoridades
eleitas devem redefinir de alto a baixo suas políticas públicas de
maneira a satisfazer os apetites do setor privado, nas áreas que ainda
lhe escapam.
Segurança alimentar, normas de toxicidade, seguros-saúde, preço dos
medicamentos, liberdade na internet, proteção de privacidade, energia,
cultura, direitos autorais, recursos naturais, formação profissional,
equipamentos públicos, imigração: não há um campo de interesse geral que
não passe pelo jugo do livre-comércio institucionalizado. A ação
política dos eleitos se limitará a negociar com as empresas ou seus
mandatários locais as migalhas de soberania que eles quiserem lhes
permitir.
Está desde já estipulado que os países signatários vão assegurar a
“colocação em conformidade de suas leis, de seus regulamentos e de seus
procedimentos” com as disposições do tratado. Ninguém duvida que eles
vão se esforçar para honrar esse compromisso. Caso contrário, poderiam
ser objeto de processos diante de um dos tribunais criados para arbitrar
disputas entre os investidores e os países, e com o poder de impor
sanções comerciais contra estes últimos.
PAÍSES PROCESSADOS
A novidade introduzida pela TTIP e pela TTP é que elas permitiriam às
multinacionais processar em seu nome um país signatário cuja política
tivesse um efeito restritivo sobre sua exploração comercial.
Sob tal regime, as empresas seriam capazes de contrariar as políticas
de saúde, de proteção ambiental ou de regulação das finanças em vigor
nesse ou naquele país, exigindo uma indenização em tribunais
extrajudiciais. Compostas por três advogados da área empresarial, essas
cortes especiais que atendem às leis do Banco Mundial e da ONU estariam
habilitadas a condenar o contribuinte a pesadas reparações quando sua
legislação reduzisse os “lucros futuros esperados” de uma corporação.
A Parceria de Investimento e Comércio Transatlântica também tornaria
mais pesada a fatura dessa extorsão legalizada, dada a importância dos
interesses em jogo no comércio entre as regiões. Nos Estados Unidos, com
24 mil filiais, existem 3,3 mil empresas europeias, e cada uma delas
poderia se considerar apta a buscar reparação por uma perda comercial.
Tal efeito ultrapassaria em muito os custos ocasionados pelos tratados
anteriores. Por sua vez, os países-membros da União Europeia se veriam
expostos a um risco financeiro ainda maior, sabendo que 14,4 mil
empresas norte-americanas têm na Europa uma rede de 50,8 mil filiais. No
total, são 75 mil empresas que poderiam se lançar na caça aos tesouros
públicos.
Oficialmente, esse sistema deveria de início servir para consolidar a
posição dos investidores em países em desenvolvimento desprovidos de um
sistema legal confiável; ele lhes permitiria fazer valer seus direitos
em caso de desapropriação. Mas a União Europeia e os Estados Unidos não
constituem exatamente zonas de ausência de direitos; eles dispõem, ao
contrário, de uma justiça funcional e plenamente respeitadora do direito
à propriedade. Ao colocá-los sob a tutela de tribunais especiais, a
TTIP demonstra que seu objetivo não é proteger os investidores, mas
aumentar o poder das multinacionais.
Fonte: Tribuna da Internet