Quarta, 22 de janeiro de 2014
Por Viviane Tavares
(Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz)
A desmilitarização da polícia, uma das bandeiras das jornadas de junho,
sempre foi uma das principais de Luiz Eduardo Soares, especialista em
segurança pública, professor da UERJ e antropólogo. Nesta entrevista, o
autor de mais de 20 livros, entre eles Tudo ou Nada, Elite da Tropa e
Cabeça de Porco, explica o motivo de sua defesa, e aponta que este é
apenas o primeiro passo para o caminho árduo de construção de uma
sociedade "efetivamente democrática e comprometida com o respeito aos
direitos humanos". Luiz Eduardo foi um dos principais elaboradores da
PEC-51 - recentemente apresentada pelo senador Lindbergh Farias (PT/RJ) -
que visa, segundo ele, reformar o modelo policial.
Nós temos uma polícia e um corpo de bombeiros que é militar. Você há muito tempo defende a desmilitarização. Por quê?
Considero a desmilitarização das polícias indispensável e a dos
bombeiros absolutamente conveniente, ainda que essa mudança não seja
suficiente. Mesmo porque nossas polícias civis não têm menos problemas
do que as militares. Em primeiro lugar, é preciso saber o que significa,
para uma polícia, ser militar. No artigo 144 da Constituição, significa
obrigá-la a copiar a organização do exército, do qual ela é considerada
força reserva. O melhor formato organizacional é aquele que melhor
permite à instituição cumprir suas finalidades. Finalidades diferentes
requerem estruturas organizacionais distintas. Portanto, só faria
sentido reproduzir na polícia o formato do exército se as finalidades de
ambas as instituições fossem as mesmas. Não é o que diz a Constituição.
O objetivo do exército é defender o território e a soberania nacionais.
Para cumprir essa função, tem de organizar-se para realizar o pronto
emprego, ou seja, mobilizar grandes contingentes humanos e materiais com
máxima celeridade e rigorosa observância das ordens proferidas pelo
comando. Precisa preparar-se para, no limite, fazer a guerra. Pronto
emprego exige centralização decisória, hierarquia rígida e estrutura
fortemente verticalizada. Nada disso se aplica à polícia militar. Seu
papel é garantir os direitos dos cidadãos, prevenindo e reprimindo
violações, recorrendo ao uso comedido e proporcional da força. Segurança
é um bem público que deve ser provido universalmente e com equidade
pelos profissionais incumbidos de prestar esse serviço à cidadania. Os
confrontos armados são as únicas situações em que alguma semelhança
poderia haver com o exército, ainda que mesmo nesses casos as diferenças
sejam marcantes. Mas eles correspondem a menos de 1% das atividades que
envolvem as PMs. A imensa maioria dos desafios enfrentados pela polícia
ostensiva são melhor resolvidos com a adoção de estratégias
incompatíveis com a estrutura organizacional militar. Refiro-me ao
policiamento comunitário, os nomes variam conforme o país.
E em que sentido o policiamento comunitário distingue-se das ações militares?
Essa metodologia é inteiramente distinta do "pronto emprego" e implica o
seguinte: o ou a policial na rua não se limita a cumprir ordens,
fazendo ronda de vigilância ou patrulhamento ditado pelo estado-maior da
corporação, em busca de prisões em flagrante. Ele ou ela é a
profissional responsável por agir como gestora local da segurança
pública, o que significa, graças a uma educação interdisciplinar e
altamente qualificada: diagnosticar os problemas e identificar as
prioridades, em diálogo com a comunidade, mas sem reproduzir seus
preconceitos; planejar ações, mobilizando iniciativas multissetoriais do
poder público, na perspectiva de prevenir e contando com o auxílio da
comunidade, o que se obtém respeitando-a.
Para que haja esse tipo de atuação, é imprescindível valorizar quem atua
na ponta, dotando essa pessoa dos meios de comunicação para convocar
apoio e de autoridade para decidir. Há sempre supervisão e interconexão,
mas é preciso que haja, sobretudo, autonomia para a criatividade e a
adaptação plástica a circunstâncias que tendem a ser específicas aos
locais e aos momentos. Qualquer profissional que atua na ponta, sensível
à complexidade da segurança pública, ao caráter multidimensional dos
problemas e das soluções, ou seja, qualquer policial que atue como
gestor ou gestora local da segurança pública, deve dialogar, evitar a
judicialização sempre que possível, mediar conflitos, orientar-se pela
prevenção e buscar acima de tudo garantir os direitos dos cidadãos.
Dependendo do tipo de problema, mais importante do que uma prisão e uma
abordagem posterior ao evento problemático, pode ser muito mais efetivo
iluminar e limpar uma praça, e estimular sua ocupação pela comunidade e
pelo poder público, via secretarias de cultura e esportes. Os exemplos
são inúmeros e cotidianos. Esse é o espírito do trabalho preventivo a
serviço dos cidadãos, garantindo direitos. Esse é o método que já se
provou superior. Mas tudo isso requer uma organização horizontal,
descentralizada e flexível. Justamente o inverso da estrutura militar.
‘E o controle interno?', alguém arguiria. Engana-se quem supõe que a
adoção de um regimento disciplinar draconiano e inconstitucional seja
necessária. Se isso funcionasse, nossas polícias seriam campeãs mundiais
de honestidade e respeito aos direitos humanos. Eficazes são o sentido
de responsabilidade, a qualidade da formação e o orgulho de sentir-se
valorizado pela sociedade. Além de tudo, corporações militares tendem a
ensejar culturas belicistas, cujo eixo é a ideia de que a luta se dá
contra o inimigo. Nas PMs, tende a prosperar a ideia do inimigo interno,
não raro projetada sobre a imagem estigmatizada do jovem pobre e negro.
Uma polícia ostensiva preventiva para a democracia tem de cultuar a
ideia de serviço público com vocação igualitária e radicalmente avessa
ao racismo.
A militarização da polícia justifica o seu comportamento? Uma
vez desmilitarizada, qual seria o passo seguinte, uma vez que a
corporação será a mesma?
Como disse, respondendo à primeira pergunta, desmilitarizar é apenas uma
das mudanças indispensáveis. Isolada, cada uma delas será insuficiente.
E não nos iludamos: toda reforma institucional da segurança pública
será somente um passo numa caminhada mais longa e difícil, rumo à
construção de uma sociedade efetivamente democrática e comprometida com o
respeito aos direitos humanos, na qual a justiça mereça o nome que tem.
A sociedade em seu conjunto terá de mudar, porque é ela quem autoriza,
hoje, a barbárie policial, aplaudindo execuções, elegendo políticos que
defendem o direito penal máximo e governos que acionam a violência do
Estado. As transformações, um dia, terão de incluir a legalização das
drogas, que considero uma mudança fundamental. No momento, contudo, o
que está em questão, e com máxima urgência, é salvar jovens negros e
pobres do genocídio, é acabar com as execuções extra-judiciais, as
torturas, a criminalização dos pobres e negros, é reduzir o número
inacreditável de crimes letais intencionais, é suspender o processo de
encarceramento voraz, que atinge exclusivamente as camadas sociais
prejudicadas pelas desigualdades brasileiras, é sustar a aplicação
seletiva das leis, que vem se dando em benefício das classes sociais
superiores, dos brancos, dos moradores dos bairros afluentes de nossas
cidades. Portanto, nada de idealizações ao avaliar as reformas
propostas. O que não significa que cada passo não seja de grande
relevância e mereça todo empenho de quem se sensibiliza com a tragédia
nacional, nessa área, tão decisiva e negligenciada.
Historicamente, tivemos momentos que a luta pela
desmilitarização da polícia aparece, como na promulgação da Constituição
de 1988. Por que ela não aconteceu?
Não houve comprometimento suficiente das forças mais democráticas, a
sociedade não se mobilizou, os lobbies corporativistas das camadas
superiores das polícias se mobilizaram, as forças conservadoras se
uniram e funcionou a chantagem dos antigos líderes da ditadura, em
declínio, mas ainda ativos.
Nas jornadas de junho de 2013, e em seus desdobramentos, a brutalidade
policial, que era e continua a ser cotidiana nos territórios populares,
chegou à classe média e chocou segmentos da sociedade que antes
ignoravam essa realidade ou lhe eram indiferentes. A esperança reside na
continuidade dos movimentos sociais, que adquiriram novo ímpeto, e em
sua capacidade de pautar esse debate e incluí-lo na agenda política. Não
vai ser fácil. Mas tampouco será impossível. Abriu-se para nós, pela
primeira vez, uma temporada de frestas.
Existem diversos projetos em tramitação para a desmilitarização
da polícia: um proposto pelo senador Blairo Maggi, outro do ex-deputado
Celso Russomanno, e o mais recente proposto pelo senador Lindbergh
Farias, sob sua consultoria, a chamada PEC-51. No que eles se
diferenciam?
Há mais de 170 projetos no Congresso Nacional propondo a reforma do
artigo 144 da Constituição. Vários incluem a desmilitarização. Nenhuma
proposta de emenda constitucional é tão ousada e completa quanto a
PEC-51. Nenhuma incorporou 25 anos de militância, experiência, debate e
pesquisas, ouvindo profissionais das polícias e da universidade,
operadores da justiça e protagonistas dos movimentos sociais, e buscando
o denominador comum. Isso não significa unanimidade. Há interesses
contrariados e haverá resistências corporativistas, assim como posições
ideológicas em oposição. Entretanto, o envolvimento de muitos
movimentos, inclusive de policiais, já indica seu potencial para
construir um consenso mínimo e sensibilizar a sociedade. 70% dos
profissionais da segurança querem a mudança, como pesquisa de que
participei demonstrou, em 2010. Não necessariamente querem a mesma
mudança, mas o reconhecimento da falência do modelo atual é, em si
mesmo, significativo.
Você ajudou a formular a PEC -51. Como foi isso e quais são as expectativas?
A PEC-51 visa reformar não apenas as PMs, desmilitarizando-as, mas o
próprio modelo policial, atualmente baseado na divisão do ciclo do
trabalho policial: uma polícia investiga, outra faz o trabalho
ostensivo-preventivo. Pretende também instituir carreira única em cada
polícia e transferir aos estados o poder de escolher o modelo que melhor
atenda suas peculiaridades, desde que as diretrizes gerais sejam
respeitadas. Hoje, em cada estado, as duas polícias, civis e militares,
na verdade são quatro instituições ou universos sociais e profissionais
distintos, porque há a polícia militar dos oficiais e dos não-oficiais
(as praças), a polícia civil dos delegados e dos não-delegados como, por
exemplo, os agentes, detetives, inspetores, escrivães etc. A PEC propõe
que o ciclo de trabalho policial seja respeitado e cumprido em sua
integralidade, por toda instituição policial. Ou seja, toda polícia deve
investigar e prevenir. Propõe também a carreira única no interior de
cada instituição policial. E propõe que toda polícia seja civil. A
transição para o novo modelo, caracterizado pelo ciclo completo, a
carreira única e a desmilitarização, uma vez aprovada a PEC, dar-se ia
ao longo de muitos anos, respeitando-se todo direito adquirido de todos
os trabalhadores policiais, inclusive, é claro, dos que hoje são
militares. O processo seria conduzido pelos estados, que criariam suas
novas polícias de acordo com suas necessidades. A realidade do Acre é
diferente de São Paulo, por exemplo. A transição seria negociada e
levada a cabo com transparência e acompanhamento da sociedade. As
polícias seriam formadas pelo critério territorial ou de tipo criminal,
ou por combinações de ambos. Um exemplo poderia ser o seguinte: o estado
poderia criar polícias - sempre de ciclo completo, carreira única e
civis - municipais nos maiores municípios, as quais focalizariam os
crimes de pequeno potencial ofensivo, previstos na Lei 9.099; uma
polícia estadual dedicada a prevenir e investigar a criminalidade
correspondente aos demais tipos penais, salvo onde não houvesse polícia
municipal; e uma polícia estadual destinada a trabalhar exclusivamente
contra, por exemplo, os homicídios. Há muitas outras possibilidades
autorizadas pela PEC, evidentemente, porque são vários os formatos que
derivam da combinação dos critérios referidos.
Por Viviane Tavares (Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz), em janeiro de 2014.