Segunda, 6 de janeiro de 2014
Indústria de refrigerantes dissemina epidemia global de obesidade, cinco
vezes mais onerosa que o tabagismo. Brasil é segundo país mais afetado
Ricardo Abramovay
Do site Cotrovérsia
A alimentação talvez seja o exemplo mais emblemático da distância que pode existir entre riqueza e prosperidade. Parte importante daquilo que o sistema econômico oferece à vida social agrava problemas cujas soluções vão ficando cada vez mais difíceis e caras.
Não há dúvida de que para eliminar a vergonhosa existência de 1
bilhão de pessoas em situação de fome é necessário dispor de alimentos.
Mas a verdade é que há, no mundo contemporâneo, 500 milhões de obesos.
Somados às vítimas do sobrepeso, é um contingente que supera e cresce
muito mais que o de famintos.
As doenças do excesso ameaçam mais gente que as enfermidades
da falta. Os riscos sociais que decorrem daí são crescentes e
repercutem sobre a própria viabilidade de financiamento dos sistemas de saúde em diferentes países.
Esta é a razão pela qual o tema desperta o interesse não só dos
especialistas em saúde pública, mas também de organizações financeiras
globais.
O Credit Suisse acaba de publicar um importante relatório,
cujo objeto é aquele que, isoladamente, pode ser considerado o
principal vetor da epidemia global de obesidade: o açúcar. Não o contido
naturalmente nas frutas ou no leite, mas o que se adiciona aos
alimentos, o que inclui o xarope de milho, muito usado nos Estados
Unidos e, em menor proporção, no México, na Argentina e no Canadá. No
início dos anos 1980 o consumo de açúcar (incluindo o xarope de milho)
chegava a 48 gramas per capita. Hoje, já está em 70 gramas. Isso corresponde a 280 calorias.
Só que o consumo de açúcar não se distribui de forma homogênea. A média per capita chinesa
é de 115 calorias diárias de açúcar. A dos Estados Unidos sobe a nada
menos que 658. O Brasil é o segundo consumidor, superando as 600
calorias diárias, seguido por Austrália, Argentina e México, todos na
faixa de 600 calorias diárias ou mais. Em 2009, a Associação Americana
de Cardiologia (Heart American Association) recomendava não mais que 150 calorias diárias de açúcar adicionado para homens e 98 para as mulheres.
Nos Estados Unidos (e não só lá, é claro) é nos refrigerantes que
está a maior proporção do açúcar contido em produtos alimentares: nada
menos que 33% do total.
Mas o metabolismo do açúcar diluído em refrigerantes – e também nos
sucos, é importante assinalar– é diferente daquele consumido sob a forma
de doces, balas, sorvetes, iogurtes ou molhos: a informação que o corpo
recebe do consumo de açúcar em forma líquida não o induz a reduzir
proporcionalmente o consumo de outras formas de calorias. Ou seja,
refrigerante não mata a fome e tudo indica que, ao contrário, estimula o
apetite.
A responsabilidade das empresas
As maiores
marcas globais insistem na existência de um componente genético da
obesidade. Apesar disso, o estudo do Credit Suisse mostra imensa
convergência da literatura científica que associa as doenças da
obesidade ao consumo de açúcar: 98% dos médicos entrevistados no âmbito
da pesquisa acreditam que o açúcar está na origem da obesidade, e 96%
deles associam-no à diabetes tipo 2.
Essa é uma doença que atinge hoje 370 milhões de pessoas no mundo. No
México, já é a principal causa de mortalidade. O país está entre os
campeões de obesidade (inclusive infantil) e é o segundo consumidor
mundial de refrigerantes.
Os custos do tratamento da diabetes 2 para o sistema global de saúde
já chegam a US$ 470 bilhões. Só nos Estados Unidos, são US$ 140 bilhões,
mais que os US$ 90 bilhões que se gastam com doenças decorrentes do
consumo de tabaco. Globalmente, o horizonte é que, em 2020, o sistema de
saúde gaste US$ 700 bilhões para tratar o que poderá ser 500 milhões de
habitantes atingidos por essa doença.
As grandes marcas globais que se voltam à produção de refrigerantes e
sucos levam adiante ações relevantes para a conservação e a recuperação
da água, para estimular a reciclagem de suas embalagens e até para
fortalecer o empreendedorismo.
Por mais importantes que sejam, tais iniciativas empalidecem diante
da tentativa permanente de negar o vínculo, corroborado por robustas
evidências, entre o produto que elas oferecem e algumas das mais graves
patologias epidêmicas de nossa época.
Ricardo Abramovay é professor titular do departamento de Economia da Faculdade de Economia e Administração da USP (FEA) e do Instituto de Relações Internacionais da mesma universidade. Autor de Muito além da Economia Verde e Lixo Zero: gestão de resíduos sólidos para uma sociedade mais prospera.