Do site resistir.info
por John Pilger
Nos hotéis de cinco estrelas frente ao mar de Bombaim
(Mumbai),
os filhos dos ricos gritam alegremente quando brincam de esconde-esconde. Nas
proximidades, no National Theatre for the Performing Arts, chegam pessoas para
o Festival Literário de Bombaim: autores famosos e notáveis
provenientes da classe Raj
[1]
da Índia. Eles saltam habilmente sobre uma mulher que estava
atravessada no pavimento, com suas vassouras artesanais expostas para venda,
com as silhuetas dos seus dois filhos sob uma figueira que é o seu lar.
É o Dia da Criança na Índia. Na página nove do
Times of India,
um estudo informa que todo segundo filho é mal nutrido. Aproximadamente
dois milhões de crianças com menos de cinco anos morrem todos os
anos de doenças evitáveis tão comuns como a diarreia.
Daqueles que sobrevivem, metade são atrofiados devido à falta de
nutrientes. A taxa de abandono da escola nacional é de 40 por cento.
Estatísticas como esta fluem como um rio em inundação
permanente. Nenhum outro país se aproxima delas. As pequenas pernas
finas a balouçar numa figueira são uma evidência pungente.
O gigante outrora conhecido como Bombaim é o centro da maior parte do
comércio exterior indiano, dos negócios das finanças
globais e da riqueza pessoal. Mas as pessoas são obrigadas a defecar na
maré baixa do Rio Mithi, em canais ao longo da estrada. Metade da
população da cidade não tem saneamento e vive em favelas
sem serviços básicos. Este número duplicou desde a
década de 1990 quando a "Índia brilhante"
("Shining India")
foi inventada por uma firma americana de publicidade para propagandear o
partido nacionalista hindu BJP. Pretendia estar "a libertar" a
economia da Índia e o seu "estilo de vida".
Foram demolidas barreiras que protegiam a indústria, a manufactura e a
agricultura. A Coke, Pizza Hut, Microsoft, Monsanto e Rupert Murdoch entraram
no que fora território proibido. O "crescimento" sem limites
era agora a media do progresso humano, absorvendo tanto o BJP como o Partido do
Congresso, o partido da independência. A Índia brilhante apanharia
a China e tornar-se-ia uma super-potência, um "tigre", e as
classes médias obteriam seus direitos numa sociedade onde não
havia o médio. Quanto à maioria da "maior democracia do
mundo", ela votaria e permaneceria invisível.
Não havia economia tigre para eles. O alarde acerca de uma Índia
high-tech a atacar as barricadas do primeiro mundo era em grande medida um
mito. Isto não é negar a sua proeminência em tecnologia
computacional e engineering, mas a nova classe tecnocrática urbana
é relativamente diminuta e o impacto dos seus ganhos sobre os destinos
da maioria é desprezível.
Quando a rede eléctrica nacional entrou em colapso em 2012, deixando 700
milhões sem energia, quase a metade dispunha de tão pouca
electricidade que "mal notou", escreveu um observador. Nas minhas
últimas duas visitas, as primeiras páginas dos jornais gabavam-se
de que a Índia havia "penetrado no super-exclusivo clube do ICBM
(míssil balístico intercontinental)" e lançado o seu
porta-voz, o "maior de sempre", e enviado um foguete para Marte. Este
último feito foi louvado pelo governo como "um momento
histórico para todos nós nos congratularmos".
As congratulações foram inaudíveis nas fileiras de
choças de papel betuminoso que se vêem quando se aterra no
aeroporto internacional de Mumbai e na miríade de aldeias às
quais é recusada tecnologia básica, tais como água limpa e
segura. Aqui, terra é vida e o inimigo é um "mercado
livre" desenfreado. A dominância de multinacionais estrangeiras de
cereais, sementes geneticamente modificadas, fertilizantes e pesticidas
lançou pequenos agricultores num implacável mercado global e
conduziu ao endividamento e à pobreza. Mais de 250 mil agricultores
mataram-se a si próprios desde meados da década de 1990 – um
número que pode ser uma fracção do verdadeiro pois as
autoridades locais deliberadamente relatam-nos como mortes
"acidentais".
"De um extremo ao outro da Índia", afirma o famoso
ambientalista Vandana Shiva, "o governo declarou guerra ao seu
próprio povo". Utilizando leis da era colonial, a terra
fértil tem sido tomada dos agricultores pobres por apenas 300
rúpias por metro quadrado; os promotores vendem-na por até 600
mil rúpias por metro quadrado. Em Uttar Pradesh, uma nova via expressa
serve cidades de luxo com instalações desportivas e uma pista de
Fórmula Um, tendo eliminado 1225 aldeias. Os agricultores e suas
comunidades têm lutado contra; em 2011 houve quatro mortos e muitos
feridos em choques com a polícia.
Para a Grã-Bretanha, a Índia é agora um "mercado
prioritário" – para citar a unidade de vendas de armas do
governo. Em 2010, David Cameron levou a Delhi os responsáveis das
principais companhias de armas e assinou um contrato de US$700 milhões
para fornecer caças-bombardeiros Hawk. Disfarçados como
"aviões de treino", estes aviões mortíferos
foram utilizados contra as aldeias de Timor Leste. Eles podem bem ser a maior
"contribuição" do governo Cameron à Índia
Brilhante.
O oportunismo é compreensível. A Índia tornou-se um modelo
do culto imperial ao "neoliberalismo" – quase tudo deve ser
privatizado, liquidado. O assalto em escala mundial à social-democracia
e a conivência dos principais partidos parlamentares – principiada
nos EUA e na Grã-Bretanha na década de 1980 – provocaram na
Índia uma distopia de extremos e um fantasma para todos nós.
Apesar de a democracia de Nehru ter tido êxito em conceder
eleições – hoje, há 3,2 milhões de
representantes eleitos – ela fracassou em construir um simulacro de
justiça social e económica. A violência generalizada contra
mulheres só agora está, precariamente, na agenda política.
O laicismo pode ter sido a grande visão de Nehru, mas os
muçulmanos na Índia permanecem a minoria mais pobre, mais
discriminada e mais brutalizada da Terra. Segundo a Comissão Sachar
2006, nos institutos de tecnologia de elite apenas quatro em cada 100
estudantes são muçulmanos, e nas cidades os muçulmanos tem
menos oportunidades de emprego regular do que os Dalits
"intocáveis" e os
Adivasis
nativos. "É irónico", escreveu Khushwant
Singh, "que a mais elevada incidência de violência contra
muçulmanos e cristãos se tenha verificado em Gujarat, o estado
natal de Bapu Gandhi.
Gujarat é também o estado natal de Narendra Modi, que teve
três vitórias consecutivas como ministro chefe do BJP e é o
favorito para acompanhar o tímido Rahul Gandhi nas
eleições nacionais de Maio. Com a sua xenófoba ideologia
Hindutva, Modi apela directamente aos hindus despojados que consideram os
muçulmanos como "privilegiados". Logo depois de chegar ao
poder, em 2002, turbas massacraram centenas de muçulmanos. Uma
comissão de investigação ouviu que Modi havia ordenado aos
responsáveis não travarem os desordeiros – o que ele nega.
Admirado por poderosos industriais, ele vangloria-se do mais alto
"crescimento" da Índia.
Face a estes perigos, a grande resistência popular que deu à
Índia a sua independência está em causa. A
violação colectiva de uma estudante em Delhi no ano de 2012
trouxe muita gente às ruas, reflectindo a desilusão com a elite
política e cólera devido à sua aceitação da
injustiça e de um feudalismo modernizado. Os movimentos populares
são muitas vezes liderados ou inspirados por mulheres
extraordinárias – como Medha Patkar, Binalakshmi Nepram, Vandana
Shiva e Arundhati Roy – e elas demonstram que os pobres e
vulneráveis não devem ser fracos. Esta é a prenda
duradoura da Índia para o mundo e aqueles do poder corrupto arriscam-se
ao ignorá-la.
04/Janeiro/2014
[1] Raj: Período da dominação britânica da
Índia (1757-1947).
Ver também:
O trailer de Utopia, o novo filme de John Pilger, pode ser assistido aqui . O original encontra-se em www.counterpunch.org/2014/01/03/in-india-a-spectre-haunting-us-all/ e em johnpilger.com/articles/in-india-a-spectre-for-us-all-and-a-resistance-coming Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ . |