Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

domingo, 19 de janeiro de 2014

Os rolezinhos, a era do hiperconsumismo e os shoppings

Domingo, 19 de janeiro de 2014
Do Blog do Professor Salin Siddartha
   Atravessamos um estágio da cultura produzida pelo consumismo que configura novos modos de viver. A condição cultural pós-moderna cria fugacidades que tentam apagar fronteiras de classe, gênero e geração e não permitem o estabelecimento de uma ordem e planos em longo prazo.
   As condições culturais da produção consumista circunscrevem-se no meio urbano em momentos limitados e se reconfiguram muito rapidamente na finalização de desejos. São flashes no mundo contemporâneo cujas formas adquiridas não são mantidas, porém descartadas, que escapam à nossa vontade e ao próprio poder.
   Nesse aspecto, determinados espaços públicos caracterizam o encontro entre estranhos (seja nas ruas, nos shoppings ou nas universidades) que querem viver a fruição, contudo não conseguem adquirir a visibilidade que desejam obter. É essa efemeridade que se torna um desafio para as instituições.
   O “rolezinho” é uma expressão dessa busca de visibilidade para a camada da população sem acesso à produção material da nova sociedade que se estabelece em rede. É a necessidade de participar de uma nova partilha de interesses colocada em evidência pelo processo de interatividade imposto por uma nova fase da apropriação material que, apesar de instalada mundialmente, ainda não teve o tempo e o desapego necessário para criar um novo ordenamento político e jurídico que a compreenda e dela consiga dar conta. Ou seja, a Era Industrial desaguou numa era informacional geradora da sociedade em rede, mas com novas exigências tecnológicas, políticas e legislativas necessárias para fazer a própria sociedade funcionar.
   Há uma crise planetária ambiental, política, econômica, social, cultural e, sobretudo, ética. E o problema é que ninguém quer abrir mão da possibilidade de maximizar ganhos individuais, ainda que ao preço das perdas coletivas.
   A dimensão espiritual do prestígio sofre mudanças que fragilizam os encantos conservadores, transcendendo o consumo como prática da apropriação material para reificá-lo na política de escolhas cruciais à ocupação de poder social. A relação funcional que os indivíduos mantêm com as mercadorias é metaforizada em escolhas políticas, como se candidaturas, opções e até mesmo ideologias fossem “produtos” a ser fabricados, vendidos e comprados em um “mercado” lúdico de feitichização.
   Há uma nova fase histórica do consumo: a época do hiperconsumo, em que o “sempre mais” serve de base à dinâmica consumista ilimitada da demanda de renovação, da mudança pela mudança. Há incertezas provocadas pela multiplicação dos referenciais, que desorganizaram as próprias tradições em troca da lógica das marcas.
   O consumo se coloca numa oportunidade de escolha tal, que deve gerar um descarte contínuo, programando obsolescências por intermédio da propaganda das novidades. O ato da aquisição passou a ser tão gratificante em si que sobrepujou a própria posse e uso.
  A diferença existente entre a dinâmica da apropriação da produção social em seu caráter histórico tradicional e em sua fase pós-moderna está na relação do alcance do desejo e das necessidades com o essencial e o supérfluo. A forma como o mercado trata o desejo atendido, o desejo “criado” e o desejo por mais consumo estabelece a lógica de uma nova intersubjetividade fenomênica, ontológica.
   O contraste entre a forma como os shoppings atuam e como a maioria da população vive é que aqueles precisam de um contexto de fugacidade, de dinâmica de descarte, de produção de multiplicação fluida dos referenciais, dos flashes de momentos, e sua fruição requer também descarte financeiro por parte daqueles que rapidamente repõem o dinheiro despendido com a facilidade de quem tem a mais-valia à sua disposição. Quanto à maioria da população, alija-se de tal processo, pela via do lado explorado da mais-valia, embora seja hipocritamente convidada pela mídia, segundo a segundo, a participar da apropriação material hiperconsumista, escondendo dela e de seus filhos que isso pertence a um mundo do qual ela não faz parte, embora creia na existência de um bondoso Papai Noel que não discrimina ninguém e contempla a todos.
   Estabeleceu-se uma ordem em que a quantidade de inovações tecnológicas traz-nos uma sensação de obsolescência do presente que requer novas e múltiplas estratégias coordenadas, porém incapazes de orientar a ação humana no controle dos processos de mudança da sociedade.
   Assim, a capacidade de reprodução social da modernidade, atada à cultura e à ideologia hiperconsumista, perdeu sua capacidade de funcionamento e integração, levando à tendência da perda dos direitos sociais e, consequentemente, ao aumento da exclusão.