Quarta, 15 de janeiro de 2014
Por Luciana Genro
Eu detesto shopping. Só vou por causa dos cinemas. Não é por uma questão
ideológica, eu simplesmente me sinto mal com aquele apelo ao consumo
desenfreado, inclusive dos vendedores que sempre querem te empurrar
alguma coisa mais, desesperados para aumentar seu mísero salário com as
comissões de venda. E o shopping é o templo do capitalismo, justamente
por causa deste apelo. Consumir é vital, pois no capitalismo tudo é
mercadoria (inclusive a força de trabalho do ser humano). Mas é somente
na troca ( compra e venda) que o valor das mercadorias se realiza.
Paradas elas não valem nada. Por isso a busca permanente por criar
novidades e gerar necessidades. O que temos tem que se tornar obsoleto
para que sejamos compelidos a consumir, realizar o valor das
mercadorias, e assim fornecer combustível para o capitalismo.
Mas para que a troca seja possível é preciso a igualdade jurídica. No
escravismo, por exemplo, a troca era algo excepcional e a desigualdade
entre os indivíduos era parte essencial das relações sociais. Não era
preciso igualdade, ao contrário, a sociedade era movida a chibatadas.
Neste sentido o capitalismo foi uma evolução tremenda. Com a
generalização da troca a igualdade tornou-se um imperativo, pois é
necessário que eu reconheça no outro um igual para que possa com ele
trocar.
Para realizar o valor das mercadorias são necessários sujeitos que as
coloquem em circulação, trocando. Isto é, comprando e vendendo,
supostamente em pé de igualdade e com plena liberdade. Mas esta ideia
de igualdade e liberdade não passa de uma fantasia. Qual é a igualdade e
a liberdade real existente na relação de compra e venda da força de
trabalho,por exemplo? Nenhuma. Qual é a igualdade real existente entre
um jovem negro da periferia e um branco de classe média? É só uma
“máscara”, e ela tem uma função muito importante para o Sistema.
“A função desta ‘máscara’ [ da igualdade] é fazer ignorar o que
permanece por detrás dela, é dissipar as diferenças para que, no plano
das relações jurídicas, todos os indivíduos se coloquem num mesmo
patamar. (…) No momento da troca, o que permanece visível são apenas
duas máscaras idênticas, máscaras de sujeito de direito, e não dos
homens concretos, situados, determinados. A igualdade jurídica, que nada
mais é que a igualdade das ‘máscaras’, é essencial a esta relação,
tanto quanto ( e na exata medida em que) é essencial a equivalência
formal das mercadorias trocadas. Ora, assim como entre os embrulhos
idênticos das coisas em comércio é possível colocar uma medida comum, o
valor, entre as máscaras idênticas dos homens atomizados é possível
colocar a medida comum do direito.” ( Kashiura Júnior, Celso Naoto.
Crítica da Igualdade Jurídica – Contribuição ao pensamento jurídico
marxista. Quartier Latin,2009. Pág. 61)
A repressão, inclusive juridicamente sustentada, contra os jovens da
periferia que vão dar “rolezinho” no shopping é o momento em que a
fantasia da igualdade é desfeita de forma cabal. Caiu a máscara do
Direito. Eles não tem direito a igualdade jurídica com os jovens de
classe média que também circulam aos bandos pelo shopping, pois os
pobres não trocam, isto é, não consomem. Como ensinou um dos mais
importantes juristas marxistas, Eugeny Pachukanis, esta igualdade que
assegura a todos a capacidade abstrata de ser proprietário de
mercadorias é puramente formal.
Os jovens pobres não tem direito de circular pelos shoppings pois eles
não pertencem ao mundo do consumo. Sem consumir, são descartáveis –
pois inúteis ao capitalismo – e o lugar deles é nas periferias. Mas se
ousam invadir o templo do consumo, a polícia é chamada. Mesmo que não
roubem, não furtem, mas se não se contentam com o seu lugar periférico e
querem ocupar o espaço dos consumidores sem consumir, é para os
presídios imundos – como o de Pedrinhas no Maranhão ou o Central em
Porto Alegre – que eles devem ir. Polícia neles!!
E não faltam vozes, algumas até bem intencionadas, clamando por mais
encarceramento. São os aparatos ideológicos do Sistema agindo para
convencer os “do bem” que do outro lado estão os “do mal” e que os
encarcerando estaremos todos mais seguros. Esta separação entre os “do
bem” e os “do mal” é muito conveniente para o Sistema. Os “do mal” são
os que não têm capacidade de consumo e só atrapalham e amedrontam os “do
bem” que estão no shopping para consumir e fazer girar a roda do
capitalismo. No caso dos “rolezinhos” não há roubo nem violência, mas
isso não importa. Eles não compram, então não pertencem àquele lugar,
são “do mal”, tem que ser expulsos.
E nos presídios, lugar reservado aos descartáveis, reina a barbárie,
como vimos de forma mais aguda no Maranhão e como o filme Tropa de Elite
2 já tinha mostrado. A sociedade se chocou com a violência em
Pedrinhas, mas é hora de refletir por que se chegou a este extremo. É
hora de parar o clamor por encarceramento e aumentar o clamor por
direitos!
E falando do filme Tropa de Elite 2, exibido ontem na Globo, precisamos
mesmo é de milhares de homens e mulheres com a coragem e a generosidade
do Deputado Fraga ( que para quem não sabe é o nosso Marcelo Freixo do
PSOL/RJ) para desmontar não só as milícias mostradas no filme, mas para
seguir, com mobilização popular, no combate ao inimigo, o Sistema.
Fonte: site de Luciana Genro