Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Sérgio e sua lembrancinha

Terça, 14 de janeiro de 2014
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Sete meses depois de ter olho estraçalhado pela PM paulista, fotógrafo conta seu novo quotidiano e sonha com país sem bala de borracha

Por Tadeu Breda, na RBA
Sérgio avisa, “Gosto de café bem doce”, antes de enterrar a colherzinha no pote açúcar. Carregado, o talher abandona o recipiente metálico, sobe alguns centímetros e se dirige lentamente à xícara fumegante. Por um instante, estaciona no ar. “Bem doce”, repete, e lança o montículo branco em queda livre. Os cristais, porém, não mergulham no alvo: chocam-se contra a madeira e se esparramam pela mesa. O embaraço é inevitável.
“Faço isso o tempo todo”, justifica. “Estou sempre esbarrando e derrubando coisas.”
Alguns minutos antes, Sérgio, num gesto qualquer, havia estapeado o gravador que registrava sua voz. Outro dia, na rua, seu cotovelo acertou em cheio o nariz de uma mulher quando o braço desastrado quis dar sinal para um ônibus que se aproximava.
“Agora preciso fazer tudo, tudo mesmo, com muita calma e maestria.”
Há sete meses, a vida de Sérgio se resume a prestar máxima atenção às tarefas mais elementares. Subir escadas distraído é como escalar um tombo. Perambular pelas calçadas da Vila Jaguara, na zona oeste de São Paulo, onde mora, significa cabeça perpetuamente baixa, medindo degraus repentinos, irregulares, que se reproduzem ao sabor das garagens dos vizinhos.
“Atravessar a rua é terrível”, conta. “Usar a faixa já era um hábito meu, mas, agora, não me arrisco fora dela nem quando não há carros por perto.”
Sérgio adquiriu um novo medo, que não costuma figurar no rol das paranoias de quem frequenta a rua desde criança: ser atropelado. Hesita mesmo quando o farol está verde para os pedestres. Pensa, analisa, certifica-se do autoimobilismo antes de deixar uma calçada rumo à outra.
As dificuldades se repetem nas tentativas lentas, seguras e graduais de voltar ao trabalho. Sérgio demora um pouco mais para montar tripé, luzes e demais equipamentos de gravação, ofício que começa a aprender. “E as pessoas ficam esperando…”
Quando está com a câmera na mão, perde o foco e as oportunidades, com receio de pisar no pé alheio ou tropeçar em fios espalhados pelo chão. “São falhas que, antes, eu não cometeria, não faria, nunca fiz.” É nos detalhes do dia a dia, todos os dias, que Sérgio se dá conta da falta que lhe faz o olho esquerdo. “A grande mudança aparece nas coisas mais banais.”
***
No dia 13 de junho, muita gente sabia – e outras tantas desconfiavam – que a Polícia Militar agiria com a dureza prometida na véspera pelo governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB). Sérgio Andrade da Silva, 33 anos, não.
“Saí de casa para cobrir um protesto pacífico”, revela.
Nem as duas inexplicáveis ligações que recebeu à tarde, da sogra e de um amigo, ambas pedindo cuidado, o demoveram da ideia. “Pensei em desistir, parecia um sinal. Só que o lado profissional pesou mais.” Quando chegou à manifestação, Sérgio teve certeza de ter tomado a decisão correta. “O que vi no início da passeata eram pessoas muito empenhadas para que tudo realmente ocorresse na maior tranquilidade.”