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(Millôr Fernandes)

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Ex-escrivão admite que houve tortura no DOI-Codi paulista

Terça, 25 de fevereiro de 2014
Elaine Patricia Cruz – Repórter da Agência Brasil
   O ex-escrivão de polícia Manoel Aurélio Lopes, de 77 anos, admitiu hoje (25), em depoimento perante as comissões Nacional e Estadual da Verdade, a prática de tortura nas dependências do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), na Rua Tutóia, na época do regime militar. Segundo a Comissão Nacional da Verdade (CNV), Lopes foi o segundo agente público a admitir a prática de torturas. O primeiro foi Walter Jacarandá, durante audiência em agosto do ano passado, no Rio de Janeiro.

   Em um interrogatório que durou cerca de duas horas e meia, Lopes demorou a admitir que houve tortura no DOI-Codi – o que só ocorru depois de uma hora e 40 minutos de depoimento.
   O ex-escrivão foi convidado a depor por ter assinado o auto sobre a munição apreendida com o militante político Arnaldo Cardoso Rocha, preso e morto em 1973. Lopes admitiu a existência de tortura após a viúva, Iara Xavier Pereira, ter implorado a ele informações sobre o companheiro, que foi torturado no DOI-Codi. “O máximo que vi foi usarem latas de leite em pó, e o cidadão, nu, subir com os dois pés nessas latas e ficar encostado na parede, segurando duas folhas de papel com os braços abertos. Essa aí eu assisti. Quando não aguentavam mais, caíam da lata e recebiam os golpes. Dos [casos de tortura] femininos, nunca participei. Vi a pessoa do sexo feminino sentada na cadeira, ao lado da cadeira do dragão”, contou Lopes.
   Mais tarde, ele disse aos jornalistas que presenciou sessões de tortura de militantes políticos no DOI-Codi por curiosidade. “Para responder sinceramente, fui ver como é que funcionava isso [tortura]. E fiquei decepcionado, mas nunca agi. Fiquei decepcionado porque vi onde um ser humano é colocado e para quê. Naquele tempo, há 40 anos, o pessoal não tinha a flexibilidade mental que vocês têm hoje”, afirmou Lopes.
   O que o ex-policial contou ter visto nessa experiência foram “duas mesas, um cano, um camarada nu, preso, com os braços [amarrados]". "É o chamado ‘pendura’. Saí da sala sem saber o que pensava no momento. Mas gravei aquela cena”, disse aos jornalistas. “Vi e assisti movido pela curiosidade.”
   Lopes ressaltou que nunca denunciou os casos de tortura por causa do trabalho. Indagado se o que ele fazia era do tipo “eles faziam o trabalho deles, e eu, o meu”, respondeu que era o que de fato acontecia, já que “não via outra forma” de fazê-lo. “É o trabalho, né?”, enfatizou.
   Durante o interrogatório, Lopes mencionou  a existência de uma “caixinha” para os agentes que trabalhavam no DOI-Codi. Segundo ele, “esse presentinho”, ou “essa casquinha”, correspondia a cerca de 25 cruzeiros (moeda da época). “Era um presente para quem ia trabalhar lá”, disse o ex-escrivão, sem confirmar se o pagamento era mensal e destinado aos agentes por preso que chegava ao local. “A gente retirava a verba do gabinete do secretário [de Segurança da época]. A gente tinha que ir lá pessoalmente”, revelou. O dinheiro era entregue por um tesoureiro, na própria sede da Secretaria de Segurança que, na época, ficava na Avenida Higienópolis.
   Sobre a morte do militante Arnaldo Rocha, o ex-escrivão pouco falou. Perguntado sobre um documento assinado por ele, que identifica a munição encontrada com Rocha no momento da prisão, no dia 15 de março de 1973, Lopes disse que não reconhecia o atestado, nem sua assinatura no papel, sugerindo que o documento pode ter sido modificado. “Não me recordo. Montaram, a meu ver, esse documento.” Segundo ele, no DOI-Codi, dificilmente, os escrivães tinham acesso ao material apreendido com os presos políticos e não costumavam participar dos interrogatórios. “O escrivão, naquela época, basicamente só transcrevia.”
   Pela versão oficial, Rocha e mais dois militantes da Aliança Libertadora Nacional (ALN), Francisco Emmanuel Penteado e Francisco Seiko Okama, estavam conversando na Rua Caquito, na Penha, quando uma patrulha policial passou e deu ordem de prisão. De acordo com o registro oficial, os três reagiram à abordagem e foram mortos em confronto com os policiais. Essa versão sempre foi contestada pela família. A viúva de Rocha, que tinha pedido a exumação do corpo, pediu também o aprofundamento da investigação, o que resultou na audiência da CNV, hoje, em São Paulo. O laudo feito após a exumação do corpo concluiu que não houve confronto e que Rocha foi morto após ser torturado no DOI-Codi.
   O documento sobre a munição apreendida, que tem a assinatura do ex-escrivão Lopes, foi lavrado apenas quatro dias depois da morte de Rocha e diz que ele portava documentos de identidade e carteira de habilitação com o nome falso de José Carlos Spinelli, além de um revólver Taurus, calibre 38.
   Para Iara Xavier, o depoimento de Lopes pouco contribuiu para a investigação da morte de Rocha, embora tenha sido positivo o fato de ele ter comparecido voluntariamente à audiência pública. Para ela, o ex-escrivão escondeu informações sobre o caso.
   O coordenador da Comissão da Verdade de São Paulo, Ivan Seixas, concordou com Iara, também suspeitando que Lopes tenha escondido detalhes sobre a morte de Rocha. “No caso do Arnaldo [Rocha], ele [Lopes] não falou nada porque sabe que pode se comprometer”, disse Seixas. No entanto, ele considerou importante o depoimento do ex-escrivão “por oficializar o que todo mundo sempre disse: que havia uma caixinha para a repressão e por confirmar que havia tortura”.
   “Essa caixinha existiu. Quando eu estava preso, um carcereiro me falou: 'você me deu US$ 300’. E eu disse que não tinha dado nada a ele, que ele tinha é assaltado a minha casa. E o carcereiro me falou: ‘não estou falando da sua casa. Estou falando da caixinha. A gente recebe uma grana por pessoa que é presa’”, contou Ivan Seixas à Agência Brasil. De acordo com Seixas, investigações feitas pela Comissão da Verdade indicam que essas “caixinhas” eram pagas por empresários que financiavam a ditadura.