Quarta, 18 de fevereiro de 2014
Fonte: IDDH — Instituto de Defensores de Direitos Humanos
Postado por Ize em fevereiro 18/2/2014
“O exemplo que temos de gente presa até hoje dói na carne. É o
Rafael, um morador de rua, que carregava um pinho sol para higienizar o
lugar em que ele dormia. Ele foi condenado a cinco anos. É isso que a
gente quer? A gente tem que lembrar que polícia arbitrária é arbitrária
para todos, essa polícia não serve a ninguém. Polícia que comete crime
não presta, tem que ser evitada. Agora, pior é o governante que estimula
a prática do crime”, avalia o presidente do DHH
17/02/2014
Por Cátia Guimarães,
João Tancredo é advogado e presidente do Instituto de Defesa dos
Direitos Humanos (DDH), que tem atuado na defesa dos presos políticos
das manifestações no Rio de janeiro. Nesta entrevista, ele diz que a
legislação brasileira atual dá conta de todos os crimes eventualmente
cometidos nas manifestações e defende que o que está por trás da
proposta de lei antiterrorismo, que tramita no Congresso Nacional, são
os interesses econômicos ligados à Copa do Mundo.
Nos países em que existe alguma legislação específica sobre
terrorismo, ela também vem como resultado de algum ato de comoção
social, como a história da morte do Santiago Andrade?
Normalmente acontece a chamada legislação de ocasião. São leis
criadas em decorrência de determinado fato e logo depois de comprova que
isso é um equívoco. Inclusive, se você cria uma legislação que só tem a
parte punitiva, ela tem vida útil muito curta.
O argumento que tem sido usado para a necessidade de criação
de uma lei que tipifique o terrorismo é que os “vândalos” são presos mas
não se consegue mantê-los presos porque não existe uma lei para
enquadrá-los. Isso é verdade?
Não é verdade. O Brasil é um dos poucos países que têm lei para tudo.
Então, basta usá-las. A questão é que eles querem uma legislação mais
dura por conta da copa do mundo. Existem grupos econômicos poderosos que
querem afastar as pessoas das ruas, de qualquer manifestação.
Manifestante ser chamado de terrorista é um absurdo grande. Manifestante
é manifestante. Agora, tem gente que é delinquente e aí o crime está lá
previsto. Se cometeu algum crime previsto no código penal, tem que ser
preso. A legislação tem previsão para tudo. Não tem que criar mais
nada, basta aplicar o existente.
Mas os parlamentares que defendem a nova lei garantem que ela não inibirá o direito de manifestação…
Há poucos dias, tentaram fazer uma legislação chamada crime do
desaparecimento forçado. Desaparecimento forçado por agentes do Estado.
Isso veio na esteira do Amarildo: de novo, são as histerias de momento
para criar legislação para a época, que eu insisto que são um grande
equívoco.Mas o que fizeram os senadores? Tiraram a expressão “agentes do
Estado”. Qual era a intenção clara disso? Enquadrar qualquer pessoa que
desapareça com outro naquele crime, que é um crime bárbaro, mais
perverso de todos. Na lei contra terrorismo, eles vão de certa maneira
tentar criminalizar todo e qualquer movimento que seja contrário ao que
está acontecendo: que reclame das despesas para a copa, peça mais saúde
ou mais educação. O objetivo é criminalizar toda e qualquer pessoa. Esse
é o nosso grande receio. O projeto de lei que o [José Mariano] Beltrame
apresenta, por exemplo, é quase uma repetição da época da ditadura
civil-militar. Bastava que se tivesse um pouco mais de decência para
assumir que se está reeditando uma legislação muito atrasada. Hoje você
enquadra: se alguém anda com morteiro ou alguma coisa que pode causar
dano a outra é risco de dano, está na lei. Pode ser punido hoje. Se
aqueles garotos acusados [da morte do Santiago Andrade] – que não se tem
certeza absoluta de autoria exata – fossem pegos com aqueles morteiros,
poderiam ser enquadrados pelo risco de crime de dano. Se aquele
morteiro não tivesse pegado em ninguém, a ideia seria a mesma. Quando
alguém morre ou sofre lesão corporal, tem os agravantes do fato, mas
eles já tinham praticado atos contrários à lei. E, portanto, já poderiam
ser punidos. Mas querem mártires, querem crucificar e vão tentando
criar legislações mais duras.
O grande número de pessoas que foram presas nas manifestações foram, em sua maioria, soltas. Por quê?
Tem uma prática da polícia – e quando estou falando da polícia, estou
falando do Estado, do secretário de segurança, não estou falando do PM,
que está ali na frente cumprindo ordem – de fazer prisões ilegais. Boa
parte das prisões foram inteiramente ilegais. Não vamos esquecer: o
Santiago morreu, mas a polícia colocou muita bomba em mochila de
manifestante; a polícia deu tiro com gente ferida, não podemos esquecer
os jornalistas que foram feridos pela polícia em manifestação. Parece
que nós passamos uma borracha nisso e agora só se fala do Santiago para
frente. Esse é o grande equívoco. As pessoas foram soltas porque as
prisões eram irregulares. A polícia tem essa prática, de fazer prisão
irregular e depois querer legitimar com alguma confissão dessa pessoa.
Como não consegue, tem que soltar. Aí vem aquela máxima que a polícia
gosta de repetir: a polícia prende e a justiça solta. Solta porque é
ilegal, se não a polícia manteria. O exemplo que temos de gente presa
até hoje dói na carne. É o Rafael, um morador de rua, que carregava um
pinho sol para higienizar o lugar em que ele dormia. Ele foi condenado a
cinco anos. É isso que a gente quer? A gente tem que lembrar que
polícia arbitrária é arbitrária para todos, essa polícia não serve a
ninguém. Polícia que comete crime não presta, tem que ser evitada.
Agora, pior é o governante que estimula a prática do crime.
Já em outros momentos dos protestos, tentou-se relacionar
manifestantes com grupos organizados, inclusive com acusação de formação
de quadrilha. Como isso se relaciona com a tipificação de terrorismo?
Essa questão da ação criminosa também ver deturpada. A legislação
específica foi criada para a punição de milícia, organizações
criminosas. Começam a trazer uma legislação específica para uma
manifestação de pessoas na rua. Você vê como o objetivo é inteiramente
oposto do que dizia a lei. Então, era impossível você enquadrar porque a
lei diz com todas as letras que, para ser quadrilha, precisa-se unir
mais de três pessoas de forma permanente para cometer crime. Então, tem
gente que se encontra ali embaixo e comete um crime. Isso não é
quadrilha porque eles precisam estar permanentemente unidos e se
preparando para cometer crime. Chamar para ir a uma manifestação é
cometer crime? Não. Na democracia, há o direito a manifestação. Eles
estão forçando a aplicação de legislações onde não é possível. Agora
eles precisam criar uma legislação que, no entender deles, tenha mais
efeito para que a sociedade se iniba de ir para a rua se manifestar.
As atitudes violentas que ocorreram nas manifestações não se configuram como terrorismo?
Não. O dano ao patrimônio público está previsto na lei. E responde
sob duas hipóteses, sob o ponto de vista criminal e civil porque tem que
reembolsar e pagar por aqueles danos. Isso não se configura
objetivamente como terrorismo.
O PLS 499/2013 fala
de terrorismo contra coisas, como escolas, centrais elétricas,
hospitais e estádios esportivos, considerados serviços essenciais. Isso
faz sentido?
Não tem o menor sentido. O ato de terrorismo é aquele que coloca em
risco a vida das pessoas. O maior bem que nós temos a proteger é a vida,
a integridade física. Contra coisa é dano ao patrimônio público ou
privado. Se você praticou dano ao patrimônio, pode responder legalmente,
como eu já disse. Agora, quem jogou bomba dentro do Hospital Salgado
Filho aqui no Rio de Janeiro foi a polícia, se teve que tirar gente
doente de lá, inclusive. Se alguém está praticando atos de terrorismo é o
agente do Estado.
As penas previstas no PLS 499/2013 são maiores do que as previstas pela lei da ditadura. Como se explica isso?
As pessoas começam a achar que quanto mais tempo você ficar na
cadeia, mais de exemplo vai servir para a sociedade. Isso é um grande
equívoco. O dia que cadeia for sinônimo de ressocialização de pessoas,
será o ideal. Se fosse isso, os Estados Unidos seriam o melhor país do
mundo; o Brasil também, porque tem a terceira maior população carcerária
do mundo, um número muito grande. Pena longa não é sinônimo de que as
pessoas não vão praticar delito. É sinônimo de que se vai ter mais gente
presa durante mais tempo, nada além disso. O Rafael, que é o morador de
rua que foi preso, vai sair da cadeia com uma formação importante na
área do crime. Os castigos longos dados aos filhos são ineficazes. A
gente precisa começar a rever essa questão da pena.
Alguns movimentos e militantes dos direitos humanos estão chamando esse Projeto de AI 5 da democracia. O sSr. concorda?
Os atos institucionais foram baixados por uma junta militar. Dessa
feita seria pelo poder legislativo, são deputados eleitos. Eu tenho
sinceras dúvidas dessa democracia representativa nos dias de hoje. Tenho
dúvidas se muita gente que ali está efetivamente representa a sociedade
ou se se representa ou representa grupelhos. Acho que é uma reedição de
forma piorada, porque o momento é outro. A gente pode chamar de AI 5 da
democracia. É um nome interessante. Mas com um agravante: não é baixado
por junta militar, é votado por um congresso nacional, “legitimamente
eleito” e sancionado por um poder executivo que também foi eleito pelo
povo. Eu acho que não é isso que nós precisamos.
O que o Brasil ganha com uma legislação sobre terrorismo?
A Copa acaba, o país fica. E eu acho que a gente não deveria guardar
essa herança. Essa herança é muito ruim para a sociedade brasileira.
Acho que essa copa não vai deixar nenhum benefício para a sociedade
brasileira, quem vai ganhar dinheiro com isso são as grandes empresas. E
a gente sabe que quem tem esses interesses não reverte em nenhum
proveito para a sociedade brasileira. Eu acho que, com a força que nos
resta, temos que lutar para que não recebamos isso como uma herança
maldita para o país.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/27484#.UwOpqOAPV8w.facebook