Sábado, 1º de fevereiro de 2014
Descartaram o juízo crítico em troca de uma boquinha e ainda
estigmatizam quem não lhes segue as pegadas
Por Pedro Porfírio
Antes de qualquer coisa, peço-lhe encarecidamente que
acompanhe meu raciocínio para depois, se for o caso, tirar conclusões mais
profundas, mais consistentes e mais consequentes dessa conversa em que procuro
expressar mais do que meus próprios sentimentos, preferências e
idiossincrasias.
Sim, é importante fazer uma leitura isenta daquilo que
escrevo com a melhor das intenções, com o objetivo básico de manter o norte de
nossa compreensão do processo político, da nossa busca do mundo mais justo dos
nossos sonhos, dando combate ao fisiologismo como medidor e impulsionador de
atitudes.
Sinceramente, não me interessa falar a quem se posiciona
movido por ambições mesquinhas, menores, como se a política começasse e
terminasse no seu leito, como se bom para o país, como se bom para o povo fosse
aquilo que, em primeiro lugar, fosse bom para cada um de nós.
Sou de uma época em que havia o mínimo de recato moral, de
respeito a valores abraçados, isso em qualquer área de atuação. Lembro bem o
que acontecia nas redações e ainda está vivo, procurado ser o mais honesto e
mais lúcido possível, Jânio de Freitas,
cujo exemplo, quando eu ainda engatinhava no jornalismo, nunca me saiu da
cabeça.
Falo do dia em que, no ano de 1963, quando tinha apenas 31
anos, ele e toda uma equipe, em que se destacava o poeta Reynaldo Jardim,
pediram demissão do CORREIO DA MANHÃ
por divergências com a proprietária do jornal,
Niomar Bittencourt. Independente
do mérito, parecia claro que o grupo estava abrindo mão de suas fontes de
subsistência num jornal que era um dos mais respeitados ícones da imprensa
brasileira, cujo papel histórico nos primeiros combates à ditadura foi
referenciado.
Isso quer dizer: naquele tempo, as convicções falavam mais alto, mesmo
quando elas podiam custar o leite das crianças.
Hoje, infelizmente, a quase totalidade das pessoas trocou
seus valores por interesses,
posicionando-se diante da vida particular e da vida pública segundo seus
instintos mais torpes, o que equivale a ver prosperar em cada uma o arrivismo,
o oportunismo e até mesmo a traição sem cerimônia.
Personagens que abriram mão de suas próprias juventudes, de
suas potencialidades e possibilidades individuais, que se deram por inteiro a causas
generosas, a discursos revolucionários, são hoje protagonistas de
comportamentos inescrupulosos, num deprimente apego ao poder, aos seus vícios e
aos frutos venenosos que dele emanam.
Pior do que esses que
lutaram no maior despojamento por idéias transformadoras, sepultadas pelo pragmatismo
que as desfigurou, são os que hoje aparecem no uso e abuso de patentes e
franquias de verniz ideológico, de aparência progressista, que se dizem
seguidores de líderes admiráveis, mas que não passam de carreiristas de olho
tão somente em uma boquinha qualquer, em algo que lhes impregne de
poder, que lhes distinga dos pobres mortais, que lhes permita meter a mão e
lhes garanta uma boa vida de luxo e riqueza.
Prisioneiros dessas ambições insaciáveis, muitos fazem
opções por mera avaliação de "mercado". Não importa por quem torcem e onde se
enfileiram por que o que desejam mesmo é levar vantagem e alojar-se onde possam
ter do bom e do melhor pelo mínimo de esforço.
Como o Estado brasileiro é todo poderoso, é determinante, é
hegemônico, ter acesso às suas instâncias, mesmo nos mais baixos escalões, é
tudo o que norteia a todos os que se aproximam de suas muralhas. Para isso,
como já disse Montesquieu há mais de 200 anos, não titubeiam em corromperem
seus próprios princípios como ponto de partida para se tornarem sócios cativos
dos clubes de corruptos ávidos e cegos, perfilando o comprometimento acrítico: aquilo que lhes sinalizar oportunidade de ganho
é o certo; tudo o mais é descartável.
E olha que essa corrosão do caráter não se dá apenas para garantir o
leite das crianças. O adesismo ao poder, qualquer poder, é pelo gozo de suas
fontes, é por aquilo que não faz falta a um cidadão comum, que vira um plus, o
algo mais que lhes dota de compensações existenciais despudoradas, até mesmo de
dotes sexuais irresistíveis.
O homem de hoje se tornou politicamente ambidestro e
multifacético, guloso, luxuriante, assumidamente boçal, moralmente sem freios,
uma metamorfose ambulante, de onde incomoda-o exasperadamente a teimosia de
alguns em preservar sua coerência, sua fé e suas convicções, indiferentes a
ganhos e perdas.
Dizem os oráculos que
as civilizações se degeneram, mas se reconstituem em gerações vindouras.
Afirmam os estudiosos que as condições objetivas resgatam o fio da história, na
medida em que as transgressões são percebidas e desmascaradas. Essa
possibilidade seria a luz no fim desse túnel inercial que parece sem fim.
Hoje, a cotação do
bem está lá nas profundezas, enquanto a esperteza e a trapaça reinam nos píncaros,
graças ao cruzamento de apetites colossais. E o mais grave é que essa aliança pútrida transforma angústia em
arrogância, blindando os caros amigos do poder de toda e qualquer crítica e
fazendo deles senhores infalíveis a um ponto de que qualquer reparo a eles é um
pecado mortal imperdoável. É um ato de agressão passível da pena máxima.
Minha esperança é de que quem se dá ao trabalho de ler meu
blog não esgotou sua capacidade de raciocínio amplo e tem tranquilidade
suficiente para entender que meu dever enquanto velho escriba é não deixar nada
passar em branco por conveniência pessoal, ainda que isso possa custar o
isolamento e o ostracismo.
É por isso que nem sempre escrevo o que é do gosto desse ou
daquele, embora reconheça que também não sou o dono da verdade. Sou, sim, e disso não abro mão, alguém que
não renunciou ao seu passado para usufruir das eventuais delícias de um
presente sem futuro.
Até por que, como está provado, toda rendição fisiológica é corrupta e todo adesismo açodado é suspeito.