Segunda, 31 de março de 2014
Da Pública
Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo
Saiba aqui quais são e em que pé estão os
projetos de leis antiterrorismo que serão debatidos hoje em São Paulo,
vistos como ameaça às manifestações durante a Copa
Passada a aprovação do Marco Civil da Internet na Câmara dos
Deputados, na última terça-feira (25), o foco agora se volta para a casa
vizinha. O Senado, além de ser o atual responsável por conduzir o texto
de regulamentação da internet, pode, a qualquer momento, nas próximas
semanas, avançar com a tramitação das leis antiterrorismo – como foram
apelidadas – e que estão estagnadas desde o final de fevereiro.
O Marco Civil da Internet chegou oficialmente ao Senado na última
quarta-feira, 26, e pode contribuir para atrasar ainda mais a votação
desses projetos que, de acordo com os seus articuladores, deveriam ser
aprovados antes da Copa. Se o Marco Civil não for debatido e votado em
45 dias, passa a trancar toda a pauta da casa, impedindo que qualquer
proposta legislativa seja votada.
De um lado, diminuem as probabilidades de ter uma legislação
antiterrorista promulgada antes da Copa do Mundo, que se inicia em
junho. De outro, o Senado mantém na pauta a possibilidade de que, a
depender das articulações políticas, uma lei antiterror seja aprovada a
toque de caixa.
Três projetos para tipificar terrorismo
A tentativa de tipificar o terrorismo na legislação brasileira é atualmente encabeçada por três projetos de lei diferentes.
O Projeto de Lei do Senado (PLS) 728, de 2011, é o pioneiro e,
provavelmente, o menos promissor dos três. Apresentado pelos senadores
Marcelo Crivella (PRB RJ), provável candidato ao governo do Rio, Ana
Amélia (PP RS), futura candidata ao governo gaúcho; e Walter Pinheiro
(PT BA), o texto pretendia tipificar o terrorismo antes mesmo da
realização da Copa das Confederações 2013 e cita explicitamente a Copa
2014 como justificativa, argumentando que é preciso que “honremos os
compromissos assumidos na subscrição dos Cadernos de Encargos perante a
FIFA”.
O PL 728 foi enviado à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania
(CCJ) no final de fevereiro e, somente no dia 24 de março, foi designado
à relatora Gleisi Hoffmann (PT PR). Caso aprovado na CCJ, não precisa
ir a Plenário e segue diretamente para a Câmara dos Deputados (decisão
terminativa).
Entretanto, nas quatro comissões em que tramitou, o PL 728 recebeu
pareceres desfavoráveis de três – apenas a Comissão de Educação, Cultura
e Esporte (CE) o aprovou. Prevê penas de 15 a 30 anos para quem
“provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa à
integridade física ou privação da liberdade de pessoa, por motivo
ideológico, religioso, político ou de preconceito racial, étnico ou
xenófobo” (em caso de morte, a pena aumenta para 24 a 30 anos). A pena
aumenta um terço se praticado em estádios de futebol no dia de jogos da
Copa. O PL ainda define penas para terrorismo contra coisa (8 a 20
anos), ataque a delegações (2 a 5 anos), violação de sistemas de
informática (1 a 4 anos), falsificação (2 a 6 anos) e revenda ilegal de
ingressos (6 meses a 2 anos) e falsificação de credencial (1 a 5 anos),
dentre outros.
A condenação mínima do PL 728 é cinco vezes a prevista pela Lei
7.170/83, a quarta e última Lei de Segurança Nacional da Ditadura
Brasileira, ainda em vigor, que prevê 3 a 10 anos de reclusão para quem
“praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo”. Foi esta a Lei
aplicada no enquadramento de Humberto Caporalli, 24 anos, e Luana
Bernardo Lopes, 20, durante o protesto em 7 de outubro do ano passado,
no Centro de São Paulo. Na época, os dois jovens foram acusados de
participar do quebra-quebra de uma viatura policial, detidos na
delegacia e encaminhados a Centros de Detenção Provisória no estado (leia o depoimento de Humberto aqui).
A acusação dos jovens sob a legislação do período ditatorial chegou a
ser criticada pela ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República.
Terrorismo no “novo Código Penal”
Duas semanas após o PL 728 ter sido proposto, o senador Aloysio Nunes
Ferreira (PSDB-SP), líder do partido no Senado, apresentou uma proposta
bastante similar, o PLS 762/11.
A definição de terrorismo e a pena são exatamente as mesmas do PL
728, com pequenas modificações nos critérios que levam ao aumento da
condenação: o PL 762, por exemplo, define que a pena aumenta de um terço
se o terrorismo é praticado “em locais de grande aglomeração de
pessoas”.
O PL 762 também prevê condenação ao terrorismo contra coisa e traz
penas para incitação ao terrorismo (3 a 8 anos), grupo terrorista e
financiamento ao terrorismo (5 a 15 anos).
O futuro do PL 762 é duvidoso. O projeto esteve próximo a ser votado
na CCJ, ao final de 2012, após receber relatório favorável do senador
Aécio Neves (PSDB-MG). Entretanto, o próprio senador Aloysio Nunes
retirou o PL da Pauta atendendo a um ofício da Presidência do Senado
para que o texto tramitasse em conjunto ao PL 707/11, do senador Blairo
Maggi (PR MT).
O texto de Maggi, por sua vez, apesar de ter sido publicado em
novembro de 2011 não havia avançado na tramitação nem conseguido
relatórios favoráveis, como obteve o PL 762 de Aloysio. Além disso, a
definição de terrorismo do texto de Maggi é distinta:
Por fim, ambos os projetos foram anexados ao PL 236/12, da reforma do
Código Penal Brasileiro, que tramita com mais de 140 projetos apensados
– tornando ainda mais complexo o futuro da lei antiterrorismo. Agora, é
preciso que o Senado vote a reforma do Código Penal para que o PL 762
seja aprovado.
A lei antiterror
Após o PL 762 ser apensado à reforma do Código Penal, o mesmo senador
Aloysio Nunes participou do PL 499, talvez o mais conhecido dos
projetos antiterrorismo. Proposto por uma comissão mista de 14 senadores
e deputados presididos pelo senador Romero Jucá (PMDB RR) e o deputado
Cândido Vaccarezza (PT SP), o projeto foi publicado em novembro de 2013.
O texto tem pontos bastantes similares ao 762 e ao 728, define
terrorismo como “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado
mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à
saúde ou à privação da liberdade de pessoa”, e mantém a mesma pena de
15 a 30 anos de reclusão. O projeto também prevê condenação ao
terrorismo contra coisa, incitação, formação de grupo terrorista e
financiamento.
A diferença é que, por ser proposto por uma comissão mista, o PL 499,
inicialmente, não precisaria passar à CCJ e seria avaliado – e votado –
pela própria comissão que o propôs no Senado e na Câmara.
Contudo, em fevereiro de 2014, o senador Paulo Paim (PT RS) entrou
com requerimento para que o texto fosse enviado à Comissão de Direitos
Humanos. “Eu apresentei a pedido de comissões de direitos humanos do
Brasil e a nível internacional. Me apresentaram que essa lei, da forma
que está, irá criminalizar os movimentos sociais”, explica o senador à Pública.
Paim confirmou que o requerimento foi uma estratégia para que a
matéria não fosse votada prontamente. “Da forma genérica como está
escrito, abre espaço para você inibir que haja manifestações como as
jornadas de junho que aconteceram no país. Não terá o nosso apoio. Eu
acho que não há necessidade ter uma lei antiterrorismo no Brasil. É um
trabalho desgastante, desnecessário e que não corresponde à realidade da
jovem democracia brasileira”, completa.
O deputado Cândido Vaccarezza discorda: para ele, é necessário que o
Brasil tenha uma lei antiterrorismo. “Há 25 anos, quando foi elaborada, a
Constituição disse o seguinte: é preciso ter uma legislação específica
do crime de terrorismo que será regulamentada em Lei Federal – isso
nunca foi discutido ao longo desses anos”, disse à reportagem. O
deputado explicou que o PL 499 se insere em um conjunto de mais de 100
assuntos que estão sendo avaliados pela Comissão Mista da Consolidação
da Legislação Federal e regulamentação de dispositivos da Constituição
Federal, criada em 2013 pelo Senado e Câmara.
Quando questionado se a legislação poderia criminalizar movimentos
sociais, Vaccarezza responde: “isso é uma crítica de quem não entende do
assunto. Não existe hipótese em um projeto desse de criminalizar
movimentos sociais. Não cabe na lei”, assegura.
Vaccarezza afirma que o PL 499 não tem nenhuma relação com as
manifestações de rua ou black blocs. “Nada disso. Tem relação com o
seguinte: vai ter Copa, teve a vinda do Papa, o Brasil cada vez mais vai
receber eventos internacionais, vem o Elton John na Bahia… Se um grupo
terrorista quiser matar metade da delegação americana, vai ser julgado
no Brasil pelo Código Penal, não tem um código específico para punição
de crime terrorista”, argumenta.
A Pública tentou contato durante semanas com o senador Aloysio Nunes, sem sucesso.
Ainda em fevereiro, os senadores Eduardo Braga, Randolfe Rodrigues e
Eduardo Suplicy entraram com requerimentos para quem o PL 499 passasse
também pela CCJ e Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional.
Agora, os requerimentos precisam ser aprovados ou rejeitados antes
que o PL 499 possa avançar, votação que pode ser realizada de forma
simbólica sem que isto precise ser incluído na ordem do dia.
Vaccarezza afirmou que a Câmara dos Deputados têm condições de votar
rapidamente a proposta assim que liberada do Senado, mas disse não estar
articulando a aprovação do PL junto à presidente.
Há ainda a possibilidade que o senador Eunício Oliveira (PMDB CE),
que conta com apoio do presidente do Senado Renan Calheiros, elabore uma
nova proposta de tipificação do terrorismo, ainda sem prazo. A Pública tentou contato com o senador, mas não obteve resposta até o fechamento.
OBS.: O gráfico acima é baseado nas penas para prática de
terrorismo, sem incluir o agravamento da pena, por exemplo, se do ato
resulta morte. Em 1969, por exemplo, esse agravamento poderia levar à
prisão perpétua e até à morte.
Contra o terrorismo vs. anti-antiterror
O deputado não está sozinho na defesa da necessidade urgente de uma
tipificação na legislação brasileira, tendo como justificativa a Copa do
Mundo e mesmo o crescimento econômico e político do Brasil no cenário
internacional, apesar do risco que podem representar, como destacou o
senador Paim.
“Nenhum país do mundo está imune a essa ameaça. Precisamos estar
preparados para que, se ocorre uma atentado de qualquer tipo, tenhamos
condições de punir os responsáveis com o rigor que esse tipo de ameaça
representa”, argumenta Leandro Piquet Carneiro, professor do Instituto
de Relações Internacionais de Universidade de São Paulo (USP).
Carneiro não acredita que seria possível enquadrar um ato eventual de
uma manifestação como ato de terrorismo com base nas propostas de lei
antiterror. “Fica claro que atos como os que os black blocs organizam
são um ato de violência política – que deveriam ser assunto do
legislativo – mas não terrorismo. Não vejo aonde essas coisas poderiam
ser confundidas. Quem não gosta da legislação antiterror criou essa
falsa confusão, uma coisa é voltada para proteger Estado e sociedade de
um tipo de ameaça muito específica, que é absurdamente necessária,
versus uma onda de violência política praticada por organizações novas
que não são terroristas. São conversas paralelas”, diz.
Sem acreditar no argumento de que a legislação anti-terrorismo não
seria aplicada contra as manifestações e movimentos sociais, o Comitê
Popular da Copa de São Paulo e o Comitê Pela Desmilitarização da Polícia
e da Política realizam hoje um debate crítico às propostas antiterror.
“A pergunta que nós, dos Comitês Populares da Copa, e os movimentos
populares tem feito é: como você vai separar o joio do trigo se o
projeto é absolutamente genérico? A legislação não pode ser uma previsão
genérica que busque abarcar todos os casos. Quando o Projeto de Lei
coloca uma tipificação tão genérica e aberta, é impossível para nós
termos a ilusão [de] que não há a intenção do Estado de criminalizar os
movimentos populares – e isso não apenas pela legislação do terrorismo,
mas por conta de outras iniciativas que temos observado, como o Decreto
de Lei e Ordem, que diz, com todas as letras, que movimentos sociais são
forças oponentes do Estado “, diz Juliana Machado, membro do Comitê
Popular da Copa de São Paulo e da articulação nacional.
A militante se refere a uma portaria publicada em dezembro de 2013
pelo Ministério da Defesa que estabelece o uso das Forças Armadas para a
garantia da Lei e da Ordem. O texto define como forças oponentes ” São
segmentos autônomos ou infiltrados em movimentos sociais, entidades,
instituições, e/ou organizações não governamentais que poderão
comprometer a ordem pública ou até mesmo a ordem interna do País,
utilizando procedimentos ilegais”. Após receber críticas, o ministro da
Defesa, Celso Amorim, determinou ‘ajustes pontuais’ no conjunto de
regras.
“Nós sabemos que mudar as palavras não muda as intenções. Para nós é
bastante complicado perceber que existe toda uma constelação de
iniciativas nesse sentido e não vamos nos iludir que esse PL específico
(PL 499) não vai nos atingir”, completa Juliana.
“Tipificar o crime de terrorismo foi percebido pela sociedade como um
retrocesso democrático muito grande, especialmente agora que estamos
rememorando os 50 anos da Ditadura Militar. A imagem de ‘procura-se
terroristas’ com a fotografia de militantes políticos fizeram parte da
nossa história é muito marcada na nossa sociedade. Foi essa a imagem que
chegou à memória das pessoas de forma muito clara com essa iniciativa”,
diz Gabriel Elias, cientista político e membro do Comitê Pela
Desmilitarização da Polícia e da Política.
Gabriel, entretanto, sinaliza que lhe preocupa ainda mais a aprovação
de um projeto vindo do Executivo que limite o direito de manifestação.
Ele faz referência ao texto, ainda mantido em segredo, que circula entre
a presidente, a Casa Civil e o Ministério da Justiça e que deve trazer limitações ao uso de máscaras e aumentar a pena por danos ao patrimônio público em manifestações. A Pública
conversou com a assessoria da Casa Civil que afirmou não ter previsão
para que a proposta seja enviada ao Congresso e tampouco confirmou o
teor do texto.
“Eu acredito que é uma ameaça muito maior que o governo tome a
iniciativa de aumentar a carga de criminalização de movimentos sociais
[do] que um parlamentar que tipifique o terrorismo. Hoje eu acho muito
difícil que seja aprovada uma lei de terrorismo. Já o próprio ato do
governo federal enviar um projeto desse tipo já passa uma mensagem muito
grave. E segundo que, com o governo federal enviando essa lei a
probabilidade de se aprovar uma lei é muito maior”, completa Elias.
O Comitê Pela Desmilitarização da Polícia e da Política irá lançar em
breve uma campanha nacional junto a políticos e artistas no site Avaaz
pela desmilitarização e contra legislações que cerceiem o direito à
manifestação.
O debate sobre as leis antiterror acontece nesta quinta-feira (27),
às 19h no Espaço Latino Americano, à rua da Abolição 244, no Bexiga. Ele
será transmitido via streaming pela Mídia Negra.
O blog Copa Pública é uma experiência de jornalismo cidadão que mostra como a população brasileira tem sido afetada pelos preparativos para a Copa de 2014 – e como está se organizando para não ficar de fora.