Quinta, 24 de julho de 2014
Do site Ponte
Como produzimos provas para condenar tanta gente?
Já
foi dito que as perguntas certeiras são o ponto de partida para
boas reportagens e pesquisas. Concordo e já coloco uma questão que há
tempos me intriga: como São Paulo (e o Brasil) consegue mandar tanta
gente para a prisão se possui uma polícia civil com sérias dificuldades
para investigar? Já somos o terceiro País do mundo no ranking de pessoas
presas, sendo que nas prisões paulistas há um terço do total de presos
nacionais. Como produzimos provas para condenar tanta gente?
As respostas ajudam a decifrar como funcionam as engrenagens
dessa fábrica de aprisionamento em massa que estamos construindo em São
Paulo e no Brasil. O caso das prisões de Fábio Hideki e de Rafael
Marques, detidos sob a acusação de prática de crimes durante os
protestos em São Paulo, servem para mostrar a lógica desse mecanismo.
Os dois foram presos no dia 23 de junho numa manifestação na Avenida
Paulista durante a Copa do Mundo. A Secretaria de Segurança Pública
paulista defendeu a legitimidade das prisões afirmando ter provas de que
eles portavam explosivos. Diversas testemunhas afirmaram, no
entanto, que o flagrante foi forjado, incluindo o padre Julio
Lancelotti, vigário do Povo da Rua, que estava ao lado dos jovens quando
eles foram detidos. A SSP rebate e diz que o Ministério Público
acompanha de perto as investigações e que os
promotores denunciaram Hideki e Marques à Justiça.
Na
semanas que se seguiram às prisões, campanhas foram feitas para que os
dois fossem soltos, entidades contestaram a legitimidade da ação, o
diretor da Politécnica da USP
escreveu carta aberta, mil origamis de tsurus (pássaro da sorte) foram
confeccionados para libertá-lo, houve manifestações em São Paulo,
Guarulhos e Rio, juristas e juízes democráticos reclamaram, funcionários
da USP marcharam, uma página no Facebook foi criada e recebeu mais de 6
mil curtidas, além de inúmeros memes que se espalharam pelas redes
sociais.
Mesmo com a pressão legítima, baseada em depoimentos e vídeos que
contestavam a credibilidade das ações da segurança pública e as decisões
da Justiça, nossas instituições não se deram o trabalho de apresentar
as supostas provas ou de justificar seus atos de força. Como se não se
sentissem obrigadas a prestar contas de seus atos aos cidadãos que pagam
suas contas. Talvez porque se sentem intocáveis. Porque acham que somos
todos cegos, que não enxergamos os erros que eles cometem.
Mas já é possível juntar as peças. A figura do quebra-cabeças está
ficando cada vez mais visível. A prisão de Hideki e de Marques é apenas
a ponta de um profundo iceberg do frágil mecanismo de encarceramento de
pobres moradores das periferias. Hideki e Marques foram exceção à
regra.
Sem estrutura para realizar investigações competentes, o sistema
de Justiça vem condenando faz tempo com base em frágeis evidências. Essa
foi uma das principais conclusões da pesquisa feita por Maria Gorete
Marques do Núcleo de Estudos da Violência (USP) sobre a aplicação da Lei
de Drogas em São Paulo. Boa parte do crescimento do total de presos
decorre do aumento da prisão de pequenos traficantes.
Em 2006, havia cerca de 17 mil presos por tráfico. Cinco anos depois,
já era 52 mil. Conforme a pesquisa, quase nove entre cada dez prisões
feitas no Estado foram ocorrências em flagrante, quando a maioria estava
circulando na rua. A maioria (52%) não tinha antecedentes em sua ficha
criminal e eram negros e pardos (59%). Na primeira etapa do processo de
aprisionamento em massa, a polícia vê um negro em atitude suspeita
andando na rua. Ele é abordado e preso em flagrante.
No Judiciário, o depoimento do policial militar que prendeu o
suspeito acaba sendo sobrevalorizado. O que ele fala é considerado
verdade, mesmo quando a vítima acusa o flagrante de ser forjado. Isso
ocorre porque são depoimentos que gozam de fé pública,
termo que define juridicamente os documentos e testemunhos que são
dados por autoridades públicas no exercício de sua função. São
presumivelmente considerados verdadeiros, o que acaba dispensando a
necessidade de provas robustas para a condenação.
Na prática, isso significa que, depois de acusado pelo policial, o
suspeito passa a ter que provar a sua inocência. As provas materiais do
crime ou outros testemunhos de acusação acabam sendo meros complementos
em muitos processos. O que não impede o promotor de acusar e o juiz de
condenarem o réu. Na pesquisa do NEV-USP, as autoridades explicaram que a
gravidade do crime justificaria a decisão de condenar com base em
depoimentos de PMs e em provas frágeis.
Não foi o caso do crime Hideki e Marques. Não eram graves. Eles eram
meros bodes expiatórios para que a segurança pública e o judiciário
dessem uma resposta aos protestos durante a Copa do Mundo. Eles são
black blocs? Só dando risada. Acompanhei o movimento e sei sobre os dois
presos. Essa afirmação é ridícula. Mas qual é o ponto nevrálgico da
questão? Depois de anos e anos prendendo e condenando por nada, nosso
sistema já estava acostumado a engolir acusações mal feitas. Qual o
problema em condenar mais dois sem que haja provas?
Será que eu estou sendo injusto com nosso sistema de segurança e de
Justiça? Há apenas dois meses, eu me deparei com um caso emblemático que
foi publicado neste blog em maio.
Foi a história de José, um jovem negro de 17 anos que estava em seu
apartamento num sábado à noite. A PM perseguia quatro assaltantes de
carro pelas ruas. O grupo bateu em um poste durante a fuga, mas tiveram
tempo de descer do carro e correr dos policiais. Os PMs acharam que um
dos jovens havia subido em um edifício que ficava perto do local da
batida. Era onde José morava. Falaram com o porteiro, invadiram o
apartamento do garoto às 2 horas da manhã e o prenderam.
José tinha provas de que havia saído de casa somente para fumar no
portão. As imagens das 19 câmeras do edifício eram claras. Batom na
cueca. Mesmo assim, José continuou preso. O promotor pediu sua
condenação e o juiz bateu o martelo. No processo, sobre as imagens que
provavam a inocência do acusado, foi afirmado que o “condomínio não
tinha fé pública”. O testemunho dos policiais foi suficiente para
prendê-lo e condená-lo. As imagens de nada adiantaram. José foi solto
apenas depois que a reportagem mostrou neste blog as provas de sua
inocência. A Justiça foi forçada a soltá-lo no mesmo dia.
A sociedade merece respostas sobre o flagrante e as provas contra
Hideki e Marques. As polícias demandam reformas urgentes. O Estado
pode nos tirar os olhos, mas isso não significa que estamos cegos. Segue
abaixo, aliás, o belo vídeo feito pela Ponte sobre Alex e Sérgio,
fotógrafos baleados durante manifestações.