Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

domingo, 31 de maio de 2015

A UERJ e o ovo da serpente

Domingo, 31 de maio de 2015
Por Luiz Eduardo Soares, no Facebook
Mesmo afastado da UERJ, me angustia profundamente o que está acontecendo na instituição, à qual tanto devemos, à qual tanto deve a democracia no Brasil. Sou professor universitário há 40 anos. Comecei, com carteira assinada, em janeiro de 1976. Tornei-me docente da UERJ em 1991, há 24 anos. Tenho muito orgulho da imensa maioria dos alunos de ciências sociais e considero um privilégio ser colega de meus colegas e conviver com um grupo extraordinário de funcionários dedicados, competentes e cooperativos. A UERJ esteve à frente de seu tempo, assumindo políticas afirmativas, adotando cotas para negros, aceitando registrar travestis, e quem se sentisse estigmatizado, pelo nome que escolhessem. Com o ingresso de cotistas, o ambiente da universidade melhorou muito, a experiência acadêmica enriqueceu-se, qualificou-se, valorizou-se. Eu senti que meu trabalho cotidiano ganhara um sentido renovado e recarregava baterias ao encontrar @s estudantes. A primeira geração a chegar à universidade não veio à vida a passeio. Seriedade e entusiasmo com os estudos e as descobertas impuseram a nós, docentes, um grau superior de saudável exigência intelectual e profissional. Não por acaso, inaugurou-se o Instituto de Ciências Sociais, antiga reivindicação de quem sonha com o aperfeiçoamento acadêmico em nossa área. Fui honrado com o convite dos colegas para falar na mesa de abertura, semana passada. Preparo agora minha retirada: uma licença prêmio –à qual tinha direito havia bastante tempo, mas jamais solicitara-- e, na sequência, a aposentadoria. Pois justamente neste momento, enfrentamos desafios extremos que colocam em risco a convivência acadêmica, civil e pessoal, e a própria instituição.


Por tudo isso, com tristeza e desapontamento, considero que tenho o dever de me pronunciar. Como professor há bastante tempo, como ex-coordenador da pós, no ano em que formulamos nosso projeto de criação do doutoramento (projeto que foi aprovado), como simples membro de uma comunidade com a qual compartilhei o cotidiano por décadas, como cidadão, intelectual, militante dos direitos humanos, como indivíduo. Eis o que gostaria de dizer:



Nem sempre o quebra-quebra é vandalismo. Em minha luta pelos direitos humanos na segurança pública, testemunhei inúmeras situações em que representantes do Estado assassinaram inocentes, nas favelas e periferias. O discurso oficial abençoava a barbárie institucionalizada do modo mais torpe, covarde e cínico. Em várias ocasiões, o desespero, a dor e o sentimento de impotência de familiares e vizinhos, ante a tragédia dupla, material e moral, derramaram-se sobre o asfalto, sob a forma de gritos, choro e as mais diversas explosões de ódio. A coreografia selvagem da fúria popular só poderia ser desqualificada como vandalismo por quem, à distância, não tinha a menor ideia do que se passara ali, não tinha a mínima noção do que significa viver por anos, por décadas, assistindo ao massacre continuado e impiedoso de jovens negros e pobres, moradores de territórios vulneráveis. Desprezar a manifestação orgânica, visceral do desespero, coletivo ou individual, revela a mais grotesca insensibilidade e corresponde à adoção de uma postura cúmplice da brutalidade que vitimiza as comunidades. Em vez de se horrorizar com o assassinato arbitrário de um ser humano, em lugar de denunciar mais uma execução extra-judicial, o crítico da reação popular feroz focaliza, unilateralmente, a resposta, relegando a segundo plano o coração das trevas, o ato criminoso original.


Não se trata de avaliar a revolta explosiva como método de luta por direitos ou como tática política, nem mesmo como estratagema de comunicação, porque ela não é nada disso. Ela é o pranto incontido da mãe ante a suprema violência que se abateu sobre seu filho, contagiando uma comunidade no momento culminante do sofrimento e na ausência de canais institucionais por onde fazer fluir a indignação e o clamor por justiça. Ela é a linguagem do desamparo mais radical, na falta de instrumentos políticos disponíveis e acessíveis, que metabolizassem a dor e a convertessem em pressão efetiva por mudança real. Por isso, nada mais abjeto, a meu ver, do que a desqualificação das manifestações de dor de uma coletividade aviltada de modo cruel e extremo.