Quarta,
9 de março de 2016
por J. U. Jacoby Fernandes
No âmbito da
Administração Pública, o Poder Judiciário exerce a função típica de guardar a
Constituição Federal, por meio do Supremo Tribunal Federal — STF, julgar e
processar litígios. Esse Poder, contudo, também exerce funções atípicas ou
secundárias, quais sejam: de administração e legislativa.
No exercício
da sua função administrativa, o STF tem enfrentado questão atinente ao direito
às horas extras para os servidores ocupantes de cargo em comissão ou de função
de confiança que tenham jornada especial regulamentada por lei específica.
A questão é discutida no Processo
Administrativo nº 353.132, no qual
consta que, em 1999, o chefe da
Assessoria Jurídica da Diretoria-Geral defendeu a adoção, relativamente ao
cargo de médico, da carga semanal de vinte horas e, no tocante ao de
odontólogo, de trinta horas, independentemente de estarem, ou não, os ocupantes
investidos em cargos comissionados.
Posteriormente, o chefe da
Seção de Legislação e o coordenador de Informações Funcionais se pronunciaram
no sentido de excepcionar situações em que haja função ou cargo comissionado.
Nesse sentido, consta no Processo que
houve a edição da Ordem de Serviço nº 12/2000, que dispôs que “a duração do
trabalho dos servidores que exerçam profissão regulamentada e que não estejam
investidos em função comissionada subordina-se à jornada estabelecida na
respectiva legislação”.
Assim, em seguida, foi apresentado um
requerimento de reconsideração para que haja continuidade à prática
administrativa de concessão de horas extras, independentemente de haver
exercício de função de confiança ou de cargo em comissão.
Diante do requerimento de reconsideração, o ministro Luiz
Fux, membro da Comissão de Regimento Interno da Suprema Corte, ressaltou que
existe a necessidade de, em fiel observância ao princípio da proteção da
confiança, ocorrer a reforma parcial da decisão recorrida, a fim de apenas
aplicar o novo entendimento consubstanciado em parecer aos servidores que
passaram a ocupar cargos em comissão e funções de confiança há menos de cinco
anos da sua data, isto é, aqueles que assumiram cargos em comissão ou função de
confiança após 27.11.2008.
O ministro Fux também ressaltou o seguinte:
[...] em
relação aos que estavam ocupando, de forma ininterrupta, cargo em comissão ou
função de confiança em período anterior a 27/11/1998, deverá prevalecer a
orientação contida no parecer 27/99.
Destaco que
este voto não reconhece o direito ao pagamento de eventual hora-extra em
relação a período anterior com fulcro na tese de que o servidor teve de
trabalhar mais horas do que o necessário, mercê da profunda controvérsia acerca
do termo a quo dos efeitos da nova orientação normativa sobre o tema da jornada
de trabalho.
Com
extrema sabedoria, o ministro Marco Aurélio explicou o seguinte sobre o
referido Processo Administrativo:
Nota-se que o percebido em virtude do cargo de provimento em comissão ou
de natureza especial visa remunerar não o trabalho extraordinário prestado, mas
a responsabilidade maior do cargo ou função, o trabalho de maior valia
desenvolvido pelo servidor. Em outras palavras, a interpretação sistemática da
Lei nº 8.112/90 conduz a concluir-se que parcela remuneratória satisfeita em
razão de encontrar-se o servidor no cargo de provimento em comissão ou de
natureza especial não se refere a trabalho extraordinário. Este deve ser
remunerado a partir do que recebido normalmente pelo servidor, observado o
quantitativo concernente ao cargo de provimento em comissão como o de natureza
especial. A assim não se entender, ter-se-á situação jurídica na qual haverá
verdadeira compensação, que, por sinal, pode, em tese, não ser completa, bastando,
para tanto, que o pagamento a maior seja insuficiente a cobrir o trabalho
extraordinário.
Mais do que isso, na alteração da Lei nº 8.112/90 promovida pela Lei nº
8.270/91, dispôs-se que a regência do artigo 19 dela constante não alcança a
duração do trabalho fixada em leis especiais.
Do contexto, depreende-se, então, que os servidores protegidos, sob o
ângulo da duração do trabalho, por legislação especial estão sujeitos à jornada
normal nela prevista, sendo desinfluente a circunstância de virem a exercer
cargo em comissão ou função de confiança, no que estes – repito – geram o
direito ao aumento remuneratório tendo em conta não a dilatação da jornada, mas
o desempenho de atividade de maior responsabilidade.
Pronuncio-me no sentido de observar-se, independentemente da assunção de
cargo em comissão ou de função de confiança, a jornada estabelecida na lei
especial de regência da atividade do servidor, remunerando-se, como
extraordinárias, as horas de trabalho que a ultrapassarem.¹
Ao longo
dos seus 26 anos à frente de uma das cadeiras do Supremo Tribunal Federal, o
ministro Marco Aurélio Melo destaca-se continuamente por proferir votos
memoráveis e determinantes para a evolução do bom direito. A sua atuação
jurídica nas mais de duas décadas é assertiva e exemplar.
O
entendimento do nobre ministro é extremamente salutar, uma vez que nada exclui
a regra que impõe jornada de trabalho e, constitucionalmente, o dever de
remunerar horas extras.
No livro Vade-Mécum
de Recursos Humanos, desde a sua primeira edição em 2013, já havia
esclarecido que o servidor ocupante de cargo em comissão percebe remuneração
adicional pelo maior nível de responsabilidade de suas funções; não há
gratificação ou remuneração que exija a prestação de horas ilimitadas.
Por outro
lado, o denominado regime de dedicação exclusiva não é sinônimo de jornada de
trabalho sem limite; significa que o servidor não pode exercer outra função,
apenas isso.
O
entendimento de que os ocupantes de cargos de direção, chefia e assessoramento
se equiparam, na essência jurídica, aos cargos de gerente da iniciativa privada
e podem fixar a jornada e decidir a concessão de horas extras para os outros e
não a si próprios é sistematicamente referido para justificar a
incompatibilidade com o pagamento de horas extras.
Esse ponto
de vista há de ser revisto, porque o fato de permitir a um servidor impor aos
subordinados o dever de realizar horas extras não lhe retira o dever de
registrar corretamente a respectiva jornada de trabalho dos subordinados e de
si mesmo. Havendo o registro da jornada, o pagamento é devido. O cumprimento de
horas extras deve ser sempre atestado pela autoridade superior, em respeito ao
princípio da segregação as funções.
Essas
conclusões são aplicáveis ao regime estatutário e celetista. A Constituição
Federal é a mesma que fundamenta os dois regimes.
Cabe salientar que a Lei nº 8.112/1990 prevê
em seu art. 62 que ao servidor ocupante de cargo efetivo investido em função de
direção, chefia ou assessoramento, cargo de provimento em comissão ou de
natureza especial é devida retribuição pelo seu exercício.
¹ STF. Secretaria de Gestão de
Pessoas. Processo Administrativo nº 353.132.