Sábado, 26 de março de 2016
Do Esquerda.Net
Este artigo aborda duas
posições bastante distintas para o desenvolvimento agrícola e o seu
relacionamento com o mercado, numa perspectiva de segurança alimentar:
integração no mercado global vs. soberania alimentar.
26 de Março, 2016
Etiópia, 2008 - Foto de Lorena Pajares/flickr
A assimetria da fome e a centralidade da agricultura
Segundo estimativas da FAO, para o período 2012-2014, existiam 805
milhões de pessoas cronicamente subnutridas, 14,1% da população mundial,
tendo este número global reduzido cerca de 100 milhões no período de
uma década. No entanto, a observação mais detalhada desta realidade
permite constatar que a resolução do problema avança a velocidades
diferentes e até, situação mais preocupante, apresenta tendências
opostas em diversas regiões do globo. Enquanto as regiões desenvolvidas
apresentavam proporções inferiores ou muito inferiores a 5% da população
com problemas de subnutrição – um total de 15 milhões de pessoas num
quadro marcado pela tendencial redução do problema (em 1990-92 eram 20,4
milhões) e pela diminuta importância face à população total – a ásia
meridional vivia com 15,8% da sua população subalimentada (276,4 milhões
de pessoas), embora também num quadro de tendência decrescente (em
1990-92 eram 291,7 milhões). Numa situação distinta das anteriores
encontram-se a África subsaariana, onde o número de pessoas subnutridas
subiu de 176 milhões para 214,1 milhões, apesar de proporcionalmente ter
reduzido de 33,3% para 23,8% – neste caso a taxa de crescimento da
população superou a expansão do número de subnutridos – e a Ásia
ocidental, com uma mais do que duplicação do número de subnutridos, de 8
milhões para 18,5 milhões, e uma subida da proporção de subnutridos
face à população total de 8% para 8,7% – a expansão do número de
subnutridos superou o crescimento populacional (FAO 2014).
A agricultura é garantia dos meios de subsistência de 40% da população mundial atual e é a maior fonte de rendimento e de emprego em meios rurais a nível global. Aproximadamente 80% das necessidades alimentares dos meios rurais dos países mais pobres a nível mundial são garantidas por cerca de 500 milhões de pequenas explorações agrícolas, na maioria de sequeiro, distribuídas nesses territórios.
As previsões mais recentes, para 2014-16, confirmam a tendência de descida global do número de pessoas subnutridas registadas para 2012-14 – prevê-se 795 milhões de pessoas subnutridas, 12,9% da população mundial, para o período 2014-16 – e a manutenção dos cenários desenhados anteriormente (FAO 2015).
A agricultura é garantia dos meios de subsistência de 40% da
população mundial atual e é a maior fonte de rendimento e de emprego em
meios rurais a nível global. Aproximadamente 80% das necessidades
alimentares dos meios rurais dos países mais pobres a nível mundial são
garantidas por cerca de 500 milhões de pequenas explorações agrícolas,
na maioria de sequeiro, distribuídas nesses territórios (Hunger and Food
Security - United Nations Sustainable Development n.d.). Em todo o
mundo coabitam sistemas de produção agrícola muito distintos, em
especial no que à sua produtividade e à relação com o mercado diz
respeito, durante o século XX o diferencial de produtividade do trabalho
entre a agricultura menos produtiva e mais produtiva passou de 1:10
para 1:500, sistemas agrícolas que partilham por vezes os mesmos
territórios e mercados (Mazoyer and Roudart 2009).
Cerca de metade da população mundial com fome faz parte de pequenas
explorações agrícolas familiares, acresce 20% provenientes de famílias
sem terra que dependem da agricultura e 10% que dependem do pastoreio,
pesca e exploração de recursos florestais, os restantes 20% vivem
essencialmente na periferia das grandes cidades dos países em
desenvolvimento (Who Are the Hungry? | WFP | United Nations World Food
Programme - Fighting Hunger Worldwide n.d.).
Associado ao problema da fome está frequentemente uma situação de
pobreza, pelo que geografia da pobreza e da subnutrição se sobrepõem,
isto é, as regiões do globo onde a pobreza é mais premente são também as
regiões onde a subnutrição é maior. Segundo o Relatório do
Desenvolvimento Mundial de 2015, cerca de 1,5 mil milhões de pessoas
vive em pobreza multidimensional e 1,2 mil milhões vive com menos de
1,25 dólares por dia, onde se destaca a Ásia do sul e a África
subsaariana, ambas com mais de metade da população em situação de
pobreza multidimensional (World Bank 2014).
Dadas as tendências de crescimento da população mundial – que se
espera na casa dos 9 mil milhões de pessoas em 2050 – e de alteração de
hábitos alimentares em algumas das regiões do globo, todo este cenário
pode sofrer grandes transformações. O relatório de 2014 do programa do
Banco Mundial GAFSP (Global Agriculture & Food Security Program)
aponta para uma necessidade de aumentar a produção de alimentos em 50%
até 2050, o mesmo relatório alerta para um cenário de previsão de
impactos das alterações climáticas com capacidade para reduzir até 30%
das produções globais das culturas agrícolas.
Foi perante este resumido estado geral de insegurança alimentar que a
cimeira das Nações Unidas delineou a agenda do desenvolvimento
sustentável pós-2015 e incluiu como segundo objetivo “Erradicar a fome,
alcançar a segurança alimentar, melhorar a nutrição e promover a
agricultura sustentável”. Este ambicioso objetivo tem aplicação em todo o
mundo, embora a sua ambição seja bastante diferente em cada região. Nos
capítulos que se seguem abordam-se duas posições bastante distintas
sobre o caminho a seguir pelo desenvolvimento agrícola e a sua relação
com o mercado como parte da resposta a este desafio: uma visão de
integração no mercado global, que encontra defesa no Banco Mundial (BM),
por um lado; e uma visão de segurança alimentar a nível regional, que
integra o conceito de soberania alimentar e que é defendida pela La Via
Campesina (LVC), por outro.
A integração no mercado global
Esta linha de pensamento assenta na ideia de que é possível provocar
um aumento de produtividade e competitividade das explorações agrícolas,
mesmo das mais marginalizadas, possibilitando a integração nos
mercados, garantindo por esta via o aumento de rendimentos de uma grande
fatia da população que hoje tem dificuldade em garantir a sua
alimentação em quantidade e qualidade adequadas, alcançando desta forma a
segurança alimentar. Este caminho está explícito no Programa Global
para a Agricultura e Segurança Alimentar (GAFSP) do Banco Mundial
(Global Agriculture and Food Secutity Program 2014). Num documento de
trabalho base de suporte ao programa pode ler-se que “o crescimento da
produtividade agrícola pode levar a melhorias nos rendimentos dos mais
pobres e poderá provocar uma mudança estrutural” reduzindo a pobreza e
aumentando a segurança alimentar (Framework Document For A Global
Agriculture and Food Secutity Program 2014). O crescimento com origem
agrícola é duas a quatro vezes mais eficiente na redução da pobreza do
que o crescimento do PIB originado por outras atividades económicas
(World Development Report 2008: Agriculture for Development 2007).
Para compreensão e suporte do GAFSP constituiu-se uma “teoria da
mudança” que integra cinco passos sucessivos que se fortalecem
mutuamente: o aumento da produção (1) possibilita o surgimento de
mecanismos de incremento de valor aos produtos agrícolas e a criação de
emprego (2), que por sua vez permite a integração das explorações
agrícolas no mercado e o aumento de rendimentos (3) facilitando o acesso
à alimentação por parte dos mais vulneráveis (4) e aumentando a
resiliência do sistema além da agricultura tradicional (5) (Global
Agriculture and Food Security Program 2014).
O aumento de produtividade agrícola deve ser impulsionado por
investimentos ao nível do melhoramento de raças e combate a doenças, na
produção animal, e do desenvolvimento de novas variedades e
fertilizantes, nas culturas vegetais, assim como pelo aumento de
produtividade do trabalho pelo desenvolvimento da mecanização em ambas
as situações. Salienta-se ainda a importância da implementação de
tecnologias de rega e a necessidade de desenvolvimento de novas
tecnologias de produção adaptadas às condições locais. Os autores desta
tese referem que a garantia dos direitos de propriedade e a sua
possibilidade de transferência são fatores fundamentais para incentivar o
investimento (Framework Document For A Global Agriculture and Food
Security Program 2014). Na academia, entre os defensores desta linha de
pensamento, é grande a confiança depositada no desenvolvimento
tecnológico para garantir a segurança alimentar. Num artigo de revisão
sobre o papel da ciência para a segurança alimentar, John Beddington,
afirma ser necessária “uma nova revolução verde” que possibilite maior
eficiência no uso da água e dos nutrientes, o desenvolvimento de novos
pesticidas, com novas abordagens não químicas à proteção das culturas,
redução das perdas pós-colheita e a incorporação de conhecimento desde a
biotecnologia e a engenharia até à nanotecnologia (Beddington 2010).
O mercado global de alimentos estava avaliado, em 2012, em 4 biliões
de dólares, dos quais 80% respeitavam a comida processada, pelo que os
agricultores devem olhar para este mercado como uma oportunidade de
integração por via da transformação pós-colheita, contribuindo para a
segurança alimentar garantindo comidas saborosas, com maior poder de
conservação e, eventualmente, enriquecidas com novos nutrientes (Global
Agriculture and Food Security Program 2014).
“A maioria dos pequenos agricultores praticam agriculturas de
subsistência ou operam em mercados locais devido à falta de
conectividade a mercados mais lucrativos a nível nacional ou global”
(Global Agriculture and Food Security Program 2014). Os mesmos autores
referem que, em consequência, o incentivo ao investimento capaz de
aumentar a produtividade é baixo e por isso estes agricultores não saem
da pobreza, salientam os resultados de um estudo datado de 2012, de
Dalberg, que concluiu que apenas 10% dos pequenos agricultores a nível
mundial “participam nos mercados” (Global Agriculture and Food Secutity
Program 2014).
Um exemplo referenciado de sucesso pela via da integração no mercado global é o caso do Vietname que, entre 1993 e 2006, reduziu para metade a população que sofre de fome e o nível de pobreza passou de 58% para 18%.
Um exemplo referenciado de sucesso pela via da integração no mercado
global é o caso do Vietname que, entre 1993 e 2006, reduziu para metade a
população que sofre de fome e o nível de pobreza passou de 58% para
18%. Este resultado é interpretado como consequência de um conjunto de
medidas que iniciaram com uma “descoletivização” da terra agrícola e
algum desenvolvimento industrial e tecnológico que foram impulsionados
pela integração no mercado global, que possibilitou a exportação e o
investimento estrangeiro. O Vietname passou de um país importador de
arroz para o segundo maior exportador mundial (Guerea 2010).
Segurança alimentar a nível regional
A defesa da segurança alimentar a nível regional, integrada no
conceito de soberania alimentar impulsionado pela organização
internacional La Via Campesina (LVC), parte da interpretação de que a
segurança alimentar está a ser impossibilitada a uma parte considerável
do número de pessoas com problemas de subnutrição – tratando-se
essencialmente de famílias que dependem da atividade agrícola em países
pobres – em consequência de programas industriais e mecanismos de
mercado que afetam a produção e a distribuição de alimentos, moldando o
atual sistema alimentar (Lacey 2013).
McMichael (2013), afirma a necessidade de substituir o “sistema
industrial de agroexportação” por um sistema baseado na soberania
alimentar, que devolva à terra as suas funções sociais de produção de
alimento e suporte de vida, assumindo uma abordagem local do triângulo
produção-processamento-mercado. O mesmo autor refere que esta via
promove os interesses nacionais e locais, sendo necessário considerar
duas partes deste processo: a “re-territorialização” do sistema
alimentar; e o fim da violência do “princípio das vantagens
comparativas” que permite ao “agronegócio” edificar regiões de produção a
nível mundial e excluir as populações locais do processo produtivo e
dos mercados (McMichael 2013). Também Lacey (2013) refere a necessidade
de substituição do sistema dominante de forma a garantir a segurança
alimentar, pois este foca-se no lucro em detrimento dos direitos e do
bem-estar das populações (Lacey 2013).
O conceito de soberania alimentar foi discutido pela primeira vez
pela LVC em 1996, no México, porque os membros desta organização
consideravam que a tradicional definição de segurança alimentar perdeu
potencial na garantia do acesso local a uma alimentação adequada. O
conceito de soberania alimentar define-se como “o direito das nações e
dos povos a controlar os seus sistemas alimentares, incluindo os seus
mercados, modelos de produção, culturas alimentares e meio ambiente, em
alternativa aos modelos neoliberais dominantes, agrícola e de
mercado”(Wittman, Desmarais, and Wiebe 2010).
Segundo os defensores desta tese, os agricultores terão de ser
tecnicamente capacitados, não por via do que se poderia chamar de uma
“nova revolução verde” que lhes possibilitaria aumentar as suas
produções através da incorporação de mais “inputs de mercado”
(pesticidas, adubos, biotecnologias, etc.), o que levaria à necessidade
de maior disponibilidade financeira (que não existe entre a população
“camponesa”), mas de uma nova técnica de produção que lhes permita tirar
partido e fortalecer os recursos naturais (solo, biodiversidade, etc.)
obtendo desta forma uma maior autonomia e uma melhoria da sua qualidade
de vida (Holt-Giménez and Altieri 2012) (Rosset e Martinez-Torrez 2013).
Esta via encontra suporte na “agroecologia”, disciplina que fornece os
princípios ecológicos básicos para o estudo, desenho e gestão de
ecossistemas agrários, respondendo às necessidades de produção e de
conservação de recursos naturais, sendo também culturalmente sensíveis,
socialmente justos e economicamente viáveis (Altieri et al. 2005).
Nos últimos anos surgiram vários programas de aprendizagem sobre agroecologia, promovidos entre agricultores por organizações que integram a La Via Campesina, em diversos países, distribuídos entre os continentes Asiático, Africano e Americano. Um dos maiores exemplos de sucesso, decorreu em Cuba, onde em menos de um ano o processo de conversão para “sistemas agroecológicos” juntou mais de um terço das “famílias camponesas” cubanas com grandes aumentos de produção.
O acesso à terra assume, também nesta visão, uma elevada importância.
Rosset e Martinez-Torrez (2013), sublinham a eventual necessidade de
“conquistar terra e território ao agronegócio e aos grandes
proprietários”, através de novas reformas, ocupações e outros
mecanismos.
Nos últimos anos surgiram vários programas de aprendizagem sobre
agroecologia, promovidos entre agricultores por organizações que
integram a LVC, em diversos países, distribuídos entre os continentes
Asiático, Africano e Americano. Um dos maiores exemplos de sucesso,
decorreu em Cuba, onde em menos de um ano o processo de conversão para
“sistemas agroecológicos” juntou mais de um terço das “famílias
camponesas” cubanas com grandes aumentos de produção. No Zimbabwe um
movimento de “camponeses” conseguiu tomar posse da terra pela ocupação,
num processo que durou dois anos, e criou um fórum que integra a LVC. Em
2011 esta comunidade albergava 365 famílias que praticavam agroecologia
e organizou um encontro para discutir e promover esta prática, onde
participaram outras organizações do continente Africano que fazem parte
da LCV (Rosset e Martinez-Torrez 2013).
Segundo Altieri e Nicholls (2005) apesar da “agricultura camponesa”
ter por vezes reduzida produção para abastecer o mercado, esta é garante
da segurança alimentar. Os motivos da eventual baixa produtividade são
essencialmente sociais, não técnicos – quando a subsistência é alcançada
não há incentivos para aumentar a produção. Os autores referem ainda
que a experiência de campo da agroecologia tem demonstrado que é
possível aumentar significativamente a produtividade, de forma
sustentável, quando se melhora a estrutura biológica e a eficiência do
trabalho e dos recursos locais, referindo aumentos de produção por
hectare de duas a seis vezes mais, comparados com o ponto de partida.
Discussão
As duas visões acima descritas, focadas essencialmente na questão do
mercado, apresentam caminhos bastante distintos na resposta ao desafio
espelhado pelo segundo objetivo da agenda do desenvolvimento sustentável
das Nações Unidas: “Erradicar a fome, alcançar a segurança alimentar,
melhorar a nutrição e promover a agricultura sustentável”.
Comprova-se que a agricultura assume um papel fundamental para
responder a este desafio, não só porque é desta atividade que parte a
criação de alimento à escala planetária, mas também porque as situações
extremas de insegurança alimentar e subnutrição afetam essencialmente as
populações rurais que se relacionam diretamente com a agricultura. Os
defensores de ambas as visões reconhecem que os atuais problemas
alimentares não se justificam com incapacidade produtiva para responder
às necessidades alimentares da presente população mundial, mas radicam
em dificuldades de acesso à alimentação que estão também associadas a
situações de pobreza. Apesar de não ter sido objetivo deste trabalho
comparar a capacidade de aumento da produção de alimentos em cenários
futuros, foi notório que os defensores de ambas as visões afirmam
conseguir aumentar a produção nos locais onde a urgência de intervenção é
maior.
Para os defensores da soberania alimentar fica por responder, pois
tal não foi objetivo deste trabalho, se a via da agroecologia consegue
substituir as atuais produções que a agricultura mais intensiva permite e
que são garante de alimento para uma grande fatia das populações
urbanas. Durante a pesquisa bibliográfica não surgiram estudos sobre
esta possibilidade, no entanto, Altieri e Nicholls (2005) afirmam que a
via da agroecologia tem uma enorme margem de evolução, relembrando que o
modelo químico-mecânico dominante teve um gigante investimento estatal e
privado a nível mundial, não sendo por isso justo fazer a comparação
entre a realidade produtiva atual destas duas vias. Bernstein (2013)
cita vários estudos sobre a China e a Índia, argumentando que o número
de camponeses capazes de se reproduzir e que participam no mercado de
abastecimento às principais cidades é muito mais baixo do que os
defensores da soberania alimentar e as estatísticas oficiais desses
países alegam existir, assim, num quadro de grande crescimento da
população urbana, estes dificilmente conseguirão responder
eficientemente à crescente procura de alimentos (Bernstein 2013).
Os defensores de uma nova revolução verde parecem não esclarecer de que forma se possibilita o acesso às novas tecnologias de produção e transformação, assim como à aprendizagem necessária ao seu uso por parte de milhões de pequenos agricultores que praticam agriculturas de subsistência e vivem numa situação de insegurança alimentar. Também não esclarecem de que forma estes se integram na cadeia de valor e alcançam autonomia num mercado liberal e globalizado.
Os defensores de uma nova revolução verde parecem não esclarecer de
que forma se possibilita o acesso às novas tecnologias de produção e
transformação, assim como à aprendizagem necessária ao seu uso por parte
de milhões de pequenos agricultores que praticam agriculturas de
subsistência e vivem numa situação de insegurança alimentar. Também não
esclarecem de que forma estes se integram na cadeia de valor e alcançam
autonomia num mercado liberal e globalizado. Altieri e Holt-Gimenez
(2013) afirmam que a primeira revolução verde expulsou da agricultura
milhões de agricultores pelo favorecimento de explorações agrícolas de
grande dimensão física e económica e pelo colapso provocado pela
esterilização dos solos e o fim do “crédito subsidiado”; a proposta
segunda revolução verde mantém a mesma base que a anterior, acrescida da
biotecnologia, dos mercados globais, das preocupações ambientais e da
liderança do sector privado; e acrescentam que fazendo estes fatores
parte da origem da atual crise alimentar global, não se pode esperar
acabar com o problema da fome mas sim agravar a situação.
Como a técnica de produção utilizada não tem de determinar a
organização de mercado, este debate polarizado, entre uma estrutura de
produção e distribuição de alimentos local e uma estrutura de mercado
liberal e globalizada pode estender-se a outras formas de fazer
agricultura. Quando se observa a resolução de um problema de cariz
mundial, como o da segurança alimentar, é necessário analisar também os
resultados a uma escala global. Por exemplo: o citado sucesso dos
produtores de arroz vietnamitas só poderá ser avaliado globalmente se
acompanhado de um estudo sobre as consequências do acréscimo desta
produção ao nível dos produtores de arroz e bens substitutos, que estão
instalados nas regiões para onde este produto passou a ser exportado,
pois apesar de aparentemente a segurança alimentar no Vietname ter
melhorado substancialmente, o contrário pode ter ocorrido entre os
produtores de arroz nos locais de destino.
Segundo Mazoyer e Roudart (2009) a globalização e a liberalização
crescente dos mercados internacionais não reduziu as diferenças
tecnológicas, de produtividade e de rendimentos entre os países mais
pobres e os mais ricos, pelo contrário, nas últimas décadas a pobreza e
as desigualdades aumentaram brutalmente. “Na maior parte dos países em
vias de desenvolvimento, a agricultura camponesa subequipada e pouco
produtiva, maioritária, frequentemente tributada ou pelo menos
insuficientemente protegida, não teve meios de se equipar e de progredir
e foi submetida a uma concorrência (…) [internacional] acima das suas
forças, sofrendo assim uma queda de preços que conduziu centenas de
milhões de camponeses à ruína, ao êxodo, ao desemprego e à extrema
pobreza” (Mazoyer and Roudart 2009). A necessidade de regulamentação de
mercados surge assim como fator imprescindível para a sustentabilidade
dos sistemas agrários mas também para a melhoria das condições de vida
de quem depende da agricultura para a sua subsistência, nomeadamente o
elevado número de pessoas para quem a segurança alimentar está longe de
ser uma realidade. Mazoyer e Roudart (2009) afirmam ser necessária uma
organização mundial dos mercados, com preços hierarquizados, fixados na
razão inversa aos níveis de produtividade agrícola de cada região do
mundo, com base em acordos internacionais.
Pensar a regulamentação das trocas e a territorialização das
atividades económicas é um exercício que nos leva à construção de
respostas completamente contracorrente – não apenas nos países pobres
mas também, por exemplo, no espaço europeu – quando comparadas com as
tendências mundiais, mas se o rumo dominante atual nos tem conduzido
para o infinito crescimento das desigualdades, ao esgotamento dos
recursos naturais e ao crescente aquecimento global, não é possível
construir respostas sérias que não sejam contracorrente.