Quinta, 17 de março de 2016
O processo de regressão social pela qual passa a maioria dos países é
hoje uma realidade que arruína as nações e desvaloriza a força de
trabalho. Isso, em função do pagamento de uma dívida pública nunca
auditada. É o que acredita a investigadora e professora da Universidade
Nova Lisboa e do Instituto Internacional de História Social, Raquel
Varela. Para ela, as informações relativas à destinação dos recursos
pagos pelo cidadão devem ser públicas e transparentes e de fácil
entendimento “Em Portugal, nós não tivemos acesso à estrutura da dívida,
pois ela não é pública. A maioria dos contratos de endividamento do
estado sequer está traduzido para o português. É um novelo jurídico
completamente enrolado”, critica.
Segundo a pesquisadora, a dívida portuguesa nunca foi auditada e o
acesso aos dados relativos à arrecadação e gastos públicos, não estão
liberados. “Diante dessa realidade, tivemos que mudar nossa forma de
trabalho. Avaliamos a estrutura de impostos e contribuições sociais
pagas pelo fator trabalho. Tomamos como certa a divisão de rendimentos
proposta pelo Estado e calculamos tudo que os trabalhadores entregam e
aquilo que eles recebem.
Chegamos à conclusão de que esse valor é superavitário”, apontou.
A ausência de contrapartida do Estado na forma de serviços e assistência social aos cidadãos é uma das características do Sistema da Dívida. Esse escoadouro de recursos público que recicla papéis podres em papéis com valorização, só aumenta ainda mais a dívida das nações e a influência de organismos internacionais na autonomia dos países.
“Nós acreditamos que só o trabalho produz valor, não há rendimento do
trabalho e rendimento do capital. O rendimento do capital é o trabalho
não pago”, pontuou.
Cidadãos e a dívida pública
Com um amplo currículo ligado aos estudos de história, política e
conflitos sociais, Varela lembrou que na idade média, a dívida era
considerada usura e hoje é um compromisso assumido, ligado a honra e
caráter do individuo e que dessa forma, passa pelo entendimento de que
deve ser paga. “Não temos problemas em pagar dívidas, mas precisamos
saber se são legítimas, em nome de quem foram contraídas, a quem e a
qual taxas associadas. Duvido que a finalidade não esteja ligada ao
Sistema da Dívida”, reforça.
Ela enfatiza que o Estado não pode obrigar os cidadãos a pagarem uma
conta que sequer tem acesso aos contratos que os vinculam. “Continuamos a
ser chamados para pagarmos uma conta sem nunca termos visto a fatura”.
Crise de valores
Dentro da concepção do Estado mínimo, empresas foram privatizadas,
empregos terceirizados, sistema financeiro desregulamentado e força de
trabalho explorada. Diante desse quadro, a investigadora Raquel Varela
aponta uma falência e caos desse sistema, cuja única salvação estaria
ligada ao trabalho, na forma de salário social, aumento de impostos
sobre o trabalho, no consumo, na forma de pensões e reformas. “O
problema não é a intervenção do Estado e sim a favor de quem ele
intervém”, destacou.
Ela afirmou ainda que as crises de hoje não são ligadas à escassez e
sim à superprodução do capital, para a salvação dos bancos e taxa média
de lucros. “Prefere-se destruir capital, encerrar fábricas, despedir
pessoas, desperdiçar alimentos a ver o preço de esses desvalorizarem”,
completou.
Conscientização
O Sistema da Dívida é hoje um sistema de remuneração de capitais
falidos, cujos contratos são, além de obscuros, inacessíveis. A única
forma de mudança dessa realidade, segundo a pesquisadora, seria uma
mobilização social consciente dos povos, cobrando seus direitos e a
mudança desse modo de Estado. “Hoje, 70 pessoas tem 50% das riquezas, e
isso todo ano aumenta. Precisamos mudar essa realidade, que privilegia
grandes empresas e banqueiros e penaliza o trabalhador”, criticou.
Parceria Brasil-Portugal
Durante a palestra, foi anunciada parceria internacional com a
participação da Auditoria Cidadã da Dívida do Brasil, coordenada por
Maria Lucia Fattorelli, setor da UnB coordenado pela Professora Ivanete
Boschetti e o observatório para as condições de vida, dirigido pela
pesquisadora da Universidade Nova Lisboa por Raquel Varela.
Oportunamente será formalizado um protocolo e divulgaremos, porém os
trabalhos já estão começando.
“Essa parceria é histórica, e convocamos todas as entidades e
colaboradores da Auditoria Cidadã da Dívida a participar. Queremos
formar um grupo de estudos com a participação de pessoas das diversas
áreas, para que possamos ter um olhar distindo sobre os diversos
assuntos”, destacou Fattorelli.
Maria Lucia lembrou que o início da cooperação entre a Auditoria
Cidadã e o grupo de estudos português, ocorreu durante a auditoria da
dívida grega. “Descobrimos que a principal credora da Grécia era uma
empresa, sociedade anônima, criada em Luxemburgo por 17 países europeus
credores. Essa mesma organização também havia emprestado para Portugal e
Irlanda.
Fattorelli acrescentou que essa empresa, mesmo não sendo uma
financeira, compra, emite papéis e faz empréstimos. De sigla EFSF, a
companhia recicla papéis podres dos bancos por papéis com garantias dos
países. “Descobrimos que não havia sido feito empréstimos às nações
endividadas, era um esquema em que o país registra dívida, mas não
recebe dinheiro efetivo, e sim, papéis com garantias de outros países”,
avaliou. “Foi nesse momento que entrei em contato com a Raquel”,
lembrou.