Quinta, 31 de março de 2016
Da Revista Veja /// Blog do Sombra
"Projeto secreto"
Por Hugo Marques
De 2003 a 2005, Otávio Pessoa Cintra ocupou o cargo de gerente da
Petrobras América, no Texas, EUA. Ali, ele teve contato com o escândalo
que está na origem de tudo e garante que avisou seus superiores na
ocasião. "Tomei conhecimento em 2014 que Dilma sabia de tudo". ...
Sua identidade nunca foi revelada, mas ele está no melhor lado da Lava
Jato. Como informante, ajudou a Polícia Federal a dar os primeiros
passos para desvendar o esquema de corrupção na Petrobras. Seu nome é
Otávio Pessoa Cintra. Ele é engenheiro, tem 55 anos e é funcionário da
estatal há 30 anos. De 2003 a 2005, Cintra ocupou o cargo de gerente da
Petrobras América, braço da estatal no exterior, com sede em Houston, no
Texas, Estados Unidos. Ali, ele teve contato com o escândalo que está
na origem de tudo: a compra, altamente superfaturada, da refinaria de
Pasadena, também em Houston. Em entrevista a VEJA, Cintra garante:
"Pasadena era um projeto secreto". A história de Cintra mostra como um
funcionário da estatal teve acesso a informações comprometedoras e
tentou, sem sucesso, alertar seus superiores para o que estava
acontecendo. Ele conta que mandou recado para a então ministra Dilma
Rousseff na época. E soube, há dois anos, que seu recado chegou à
destinatária. "Tomei conhecimento em 2014 que Dilma sabia de tudo."
O engenheiro conta que, no segundo semestre de 2005, já exasperado com
as tentativas frustradas de denunciar a roubalheira na Petrobras,
procurou o deputado Jorge Bittar, do PT do Rio de Janeiro, então
influente na ala ética do partido. Na época, a Petrobras estava sob a
presidência de José Sérgio Gabrielli. Cintra contou ao deputado o que
sabia, deu detalhes do rombo de Pasadena e pediu que o assunto fosse
levado a Dilma Rousseff, então ministra da Casa Civil e presidente do
Conselho de Administração da Petrobras. Em 2014, encontrou Paulo César
de Araújo, o assessor que intermediara seu encontro com Bittar, e quis
saber o destino de sua denúncia de nove anos atrás. A resposta que
ouviu: "O Bittar levou o assunto ao Gabrielli e ao Gabinete Civil da
Presidência da República". Depois desse diálogo, Cintra ficou certo de
que Dilma foi informada do que se passava na Petrobras mas não tomou
atitude alguma.
Otávio Cintra começou a auxiliar a Polícia Federal em 28 de abril de
2014. Prestou um depoimento formal no qual detalhou o que sabia sobre
Pesadena, sobre operações ilegais envolvendo a compra de blocos de
exploração de petróleo em Angola e casos de superfaturamento, além de
citar nomes de funcionários que, mais tarde, se tornariam estrelas do
escândalo, como o ex-diretor Nestor Cerveró, e o lobista Fernando
Soares, conhecido como Fernando Baiano. Suas revelações foram
registradas num documento de dezessete páginas, anexado ao processo da
Lava Jato. A identidade do informante, no entanto, ficou sob segredo até
agora.
Depois de prestar seu depoimento sigiloso à Polícia Federal, Cintra
ainda tentou levar o assunto adiante. Procurou o ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso, que encaminhou o engenheiro ao deputado Antônio
Imbassahy, então membro da CPI da Petrobras. Imbassahy tentou convocar
Cintra para depor formalmente na CPI, ocasião em que poderia denunciar
publicamente tudo o que sabia. O requerimento de sua convocação nunca
foi votado. A seguir, os principais trechos de sua entrevista a VEJA:
"PROJETO SECRETO"
Como o senhor ficou sabendo da compra de Pasadena pela Petrobras? Eu
era commercial manager da Petrobras América. Estava em 2005 nos Estados
Unidos e vi essa movimentação das pessoas fazendo viagens pelos EUA,
passavam pela Petrobras America. E nós, o comercial da companhia, não
éramos ouvidos sobre o negócio. Tínhamos que ser ouvidos. E por que isso
não acontecia? Porque Pasadena era um "projeto secreto" . Por isso não
envolvia a gente. Vi que estavam comprando Pasadena quase
clandestinamente.
Na época, como gerente, o senhor não fez nada para impedir o golpe?
Ainda em 2005, fui ao presidente da Petrobras America, o Renato Bertani,
meu chefe. Disse a ele que não fazia sentido comprar Pasadena, ainda
mais por aquele preço absurdo. A Petrobras tinha acabado de recusar a
compra de toda a refinaria de Pasadena por 30 milhões de dólares e,
naquela, eles estavam comprando a metade da mesma refinaria por 360
milhões de dólares, sem consultar ninguém. Era óbvio que havia algo por
trás daquilo.
O problema estava no preço e no modo com que a operação estava sendo
feita? A compra de Pasadena tinha que necessariamente passar pela
Petrobras América. Eu era o gerente comercial da Petrobras América e
estava presenciando a movimentação para a compra de uma refinaria que
antes não estava nos planos estratégicos da empresa. Cabia a nós o
contato sobre as oportunidades para a empresa. Em duas outras
oportunidades anteriores, nós fomos consultados. Pasadena era uma
empresa familiar, as margens eram baixas, não tinha crédito no mercado.
Ela não podia comprar petróleo. Imagina uma padaria que não podia
comprar farinha de trigo, que não podia fazer pão. E essa era apenas uma
das muitas operações estranhas que ainda estavam por vir.
"A DILMA E O GABRIELLI SABIAM"
O senhor alertou seus superiores sobre as irregularidades na compra de
Pasadena? No segundo semestre de 2005, tive um encontro com o deputado
Jorge Bittar. Eu falei: "Deputado, tem irregularidade na compra de
Pasadena. Meia dúzia de suspeitos estão envolvidos nessa negociação".
Quem intermediou o encontro no gabinete do deputado, no Edifício Di
Paoli, no Rio, foi meu amigo, o Paulo César Araújo, que trabalhava com o
Bittar. O Bittar, então, levou o assunto à ministra da Casa Civil da
Presidência da República e ao presidente a Petrobras, Sérgio Gabrielli.
Como é que o senhor sabe que a então ministra Dilma foi alertada? O
Paulo César, assessor do Bittar, me confirmou. Quando estourou a
Operação Lava Jato, tivemos outro encontro, em 2014, no mesmo Edifício
Di Paoli. O Paulo falou: "O pior é que sua denúncia foi levada à Casa
Civil e ao Gabrielli". A Dilma e o Gabrielli sabiam. O Bittar foi à Casa
Civil e ao Gabrielli. Eu só tomei conhecimento agora em 2014 que a
Dilma sabia de tudo.
"PETROBRASSSS..."
O senhor fez alguma outra incursão na tentativa de denunciar o que
estava acontecendo na empresa? Depois que o presidente Lula já tinha
terminado o mandato, me encontrei com ele no Chile, onde também fui
gerente. Em uma cerimônia, salvo engano em 2013, um representante do
Itamaraty me colocou sentado ao lado dele, e me apresentou como
funcionário da Petrobras. Pensei em aproveitar a oportunidade e falar
com o ex-presidente, mas não foi possível. O ex-presidente tinha bebido
um pouco de uísque, me olhou, deu um tapa forte no meu peito e disse,
sorrindo: "Petrobraaasssss". Aí todo mundo riu, mas não teve jeito de
conversar com ele, não tinha clima.
Foi sua última tentativa de trazer o assunto a público? Apresentei os
problemas da Petrobras para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso,
numa reunião, em 2014, já depois do escândalo da Lava Jato. Ele pediu
que eu conversasse com o deputado Antonio Imbassahy. Fiz isso. O
deputado apresentou requerimento me convocando em 2015 para prestar
depoimento na CPI, mas o requerimento sequer foi analisado.
"COMEÇARAM A ME PERSEGUIR"
Como o senhor reagiu quando a Lava Jato começou a revelar tudo? Fiquei
com medo. Tenho medo desse grande 'sistema'. Tive medo de matarem minha
família. Vai que alguém me aborda na rua. Numa discussão de rua, dão um
tiro, e é queima de arquivo. A prova de que realmente o esquema é muito
maior é que começaram a me perseguir dentro da Petrobras depois que
avisei o deputado Bittar. Perguntavam de forma irônica: "Por que o Paulo
Roberto Costa gosta tanto de você?". Fiquei sem dormir. Quando você se
volta contra o sistema, o sistema te destrói. Quando fiz essa denúncia, o
mundo se voltou contra mim.
O que mais aconteceu para o senhor dizer que o mundo se voltou contra o
senhor? Desde que comecei a falar abertamente sobre Pasadena dentro da
empresa, nunca mais tive promoções, nunca mais me deram funções de
relevo na companhia. Nos Estados Unidos, cheguei a ganhar mais de 100
mil reais por mês e hoje não ganho um terço disso. Nos últimos anos,
fico encostado num computador, na internet, esperando a aposentadoria
chegar e ainda com medo de sofrer algum tipo de retaliação.
Hoje, diante do que já foi descoberto, qual avaliação que o senhor faz
sobre o que aconteceu? Todos eles, toda a diretoria da Petrobras é
cúmplice. Toda decisão de diretoria é colegiada. O Gabrielli é
igualzinho ao Paulo Roberto. Só que o Gabrielli colocava para conversar o
assistente dele. Eles mandam emissários. Se der problema, eles dizem:
""ão autorizei ninguém a falar em meu nome". É a mesma política do Lula.
Você acha que o Lula negociava com a arraia-miúda? Quem conversava era o
Zé Dirceu.
Procurado por VEJA, o ex-deputado Jorge Bittar, hoje presidente da
Telebrás, disse, primeiro, que não se lembrava do encontro com o
engenheiro Cintra. Depois, que o encontro nunca existiu. Seu ex-assessor
Paulo César também negou. "Eu não me lembro nem de conhecer essa
pessoa", disse ele, hoje proprietário da Fragmenta Destruição Segura de
Informações, empresa especializada na inutilização de documentos e
arquivos. O ex-presidente Fernando Henrique confirmou a reunião com
Otávio Cintra. O deputado Imbassay disse que a bancada governista
impediu a convocação do engenheiro para depor. "Ele podia ter
contribuído muito com os trabalhos da CPI, mas a convocação dele sequer
foi analisada."