Sexta, 22 de abril de 2016
Heloisa Cristaldo - Repórter da Agência Brasil
O
traço livre do arquiteto idealizou uma cidade igualmente fluída.
Entretanto, ao completar 56 anos nesta quinta-feira (21), a capital
federal tem se tornado cada vez mais fechada e distante de seu plano
original. Para área central de Brasília, Lúcio Costa projetou uma área
em que “os vazios são por ele preenchidos, sendo a cidade
deliberadamente aberta aos 360 graus do horizonte que a circunda”.
Sem
o efetivo controle das autoridades públicas, a cada dia a cidade
cerca-se com grades, tapumes, cercas vivas e condomínios fechados,
opondo-se ao objetivo de Lúcio Costa, de criar uma cidade parque. O
local proporcionaria um conforto ambiental, aumentando a percepção da
cidade no sítio, a partir de seu próprio espaço.
Cercado há mais
de três anos por motivo de segurança, o Supremo Tribunal Federal (STF)
não tem previsão de ter as grades retiradas. Localizada na Praça dos
Três Poderes, a Corte não está sozinha em sua preocupação de evitar
riscos ao patrimônio público e seus membros. Alguns metros à frente, o
Palácio do Planalto e o Congresso Nacional também têm cercas instaladas,
limitando o acesso dos turistas e manifestantes.
“Trata-se de
segurança nacional, é território onde não se tem uma vida urbana como
teria no centro de Salvador, Rio de janeiro, São Paulo. Não tenho dúvida
que é impossível se proteger de todas as formas de ameaças à
integridade física, à ordem dos trabalhos da atividade pública. Não é um
fenômeno novo, sempre aconteceu o cercamento por razões de segurança.
Enquanto houver Brasília, isso vai acontecer”, explica Frederico
Flósculo, professor do Departamento de Projeto, Expressão e
Representação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília
(UnB).
Para o professor aposentado em Teoria e História da
Urbanização da UnB, Antonio Carlos Carpintero, o cercamento é uma
agressão à Brasília e afasta o cidadão dos poderes públicos. “O Supremo
Tribunal Federal é o caso mais grave, a praça foi reduzida e ficou
descaracterizada. Cria-se uma situação de distanciamento cada vez maior
entre o povo e o poder”, assegura.
Carpintero
explica que na construção da cidade, o lugar que seria próprio para
manifestações populares foi desviado e acabou sendo abolido. “O Palácio
do Planalto e o STF foram construídos totalmente abertos. Isso foi se
colocando a partir da década de 80, inclusive na plataforma do
Congresso, que era aberta. Esse é o medo governamental de ser atacado.
No fundo, no Brasil, não há razão para se pensar em ataques ao governo.
Por mais que haja crises, a gente se resolve democraticamente”, diz.
A
cidade tem o título de Patrimônio Cultural da Humanidade e desde 1987 é
considerada Patrimônio Mundial, sendo o único bem contemporâneo a
merecer a distinção. A cidade é considerada um marco da arquitetura e
urbanismo modernos e tem a maior área tombada do mundo – 112,25 km².
“O
reconhecimento acabou no título. O momento seguinte ao reconhecimento
não foi feito, que era a elaboração de um plano de preservação dessa
área patrimonial. Não tem providencia nenhuma da área a ser preservada.
São praticamente 30 anos que Brasília é patrimônio da humanidade e os
sucessivos governos locais não tiveram a competência de fazer um plano
de preservação do conjunto urbanístico”, questiona Flósculo. Para o
professor, a falta de cuidado com o plano original da cidade é uma
“autossabotagem” dos moradores e governantes da capital federal.
O
patrimônio cultural de Brasília é composto por monumentos, edifícios ou
sítios que tenham valor histórico, estético, arqueológico, científico,
etnológico ou antropológico.
De acordo com o superintendente no
Distrito Federal do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan), Carlos Madsen, o órgão fiscaliza as instalações
inadequadas de cercamento em espaços públicos, mas esbarra em ações
judiciais que impedem a retirada de grades ou outros tipos de barreiras.
“A
preocupação do Iphan é constante, autua, fiscaliza. Todos se manifestam
com o argumento de segurança nesse momento que o país está vivendo, com
o ódio que se criou, a aversão que se criou ao outro. A sociedade
brasileira está num momento em que esses órgãos têm um argumento sólido,
que é a segurança”, defende.
Segundo Madsen, o Iphan deve
lançar em maio uma cartilha para conscientização e preservação do
patrimônio cultural do Distrito Federal. “A gente tem que trabalhar com
uma questão educativa, pois não está conseguindo reverter isso. Não
basta a questão punitiva, tem que ser educativa. Temos que sensibilizar e
fortalecer o exercício da cidadania, assim a pessoa passa a valorizar o
espaço. Estamos tratando de Símbolos da República, eles têm que
prevalecer diante de qualquer outro símbolo. Aquilo é de todos, é o
espaço público maior para o país”.
Cristiano Sousa Nascimento, da
Organização Não Governamental Urbanistas por Brasília, destaca que o
cercamento que teria caráter provisório tem se tornado permanente na
cidade. “O que é justificado por uma agressão ou ameaça tem se tornado
uma grade fixa e é por comodismo de retirar e colocar novamente. A gente
estranha muito e há uma história de empurra, empurra entre as
autoridades. Essas cercas passam a sensação de ameaça constante, o
turista olha e fica assustado”, critica.
Para reverter o cenário
de desconstrução do plano original, a Agência de Fiscalização do
Distrito Federal (Agefis) começou a diagnosticar em toda a área tombada —
Brasília, Cruzeiro, Sudoeste, Candangolândia e Noroeste — as
edificações que ferem o tombamento. A ação, em sua primeira fase, é
educativa e tem seu foco em conscientizar os síndicos da importância de
preservar o tombamento da cidade. A programação tem a duração de um ano.
A
área residencial de Brasília, segundo o conceito de Lúcio Costa, seria
outra praça. Nela, projeções de edifícios sobre pilotis dispostas
livremente “abrem” o quarteirão tradicional de habitações, substituindo
os limites de muros e edifícios pelas árvores. Seguindo a realidade dos
edifícios públicos, a área também está se fechando.
“A
superquadra foi pensada para ser aberta, com uso franco, ir e vir pleno.
As pessoas estão começando a usar uma série de artifícios, que vão na
contramão no conceito da cidade, com um abuso de uso e ocupação do
solo”, diz Frederico Flósculo.
Segundo Flósculo, a palavra-chave
para manutenção dos patrimônios da cidade é educação.“Não tem
preservação se não trabalhar a autoestima da cidade e de quem vive
nela.”
“Falta informação e orgulho”, acrescenta Cristiano
Nascimento. “As pessoas ainda não perceberam que não há nada como o
Plano Piloto, que é uma coisa única e que não vai acontecer de novo. Não
existe outra igual no mundo. Em Brasília conseguiu-se construir uma
cidade diferente de todas as outras. Enquanto as pessoas não acordarem,
não se orgulharem e não tiverem essa visão, a preservação fica mais
complicada”, conclui.