Sábado, 2 de abril de 2016
Heloisa Cristaldo e Marieta Cazarré - Repórteres da Agência Brasil
Em
vez de brincar com seu carrinho, o pequeno Jorge se diverte com as
rodas de seu automóvel plástico. “Ele gosta mesmo é de girar a roda do
carrinho. Já percebi também que é mais interessante para ele brincar com
a caixa do que com o brinquedo. Com a caixa, ele mesmo constrói sua
brincadeira”, descreve o jornalista Victor Babu Lizárraga, pai adotivo
do Jorginho, 3 anos. O menino tem Transtorno do Espectro Autista (TEA). A
Organização Mundial da Saúde (OMS) escolheu hoje (2) para lembrar o Dia
Mundial de Conscientização Autista.
O pai se emociona ao
descrever o menino: “O Jorginho não é uma criança que fala, ele não
verbaliza, mas entende tudo. Você pede para ele fazer uma coisa, ele
faz. Primeiro ele demorou muito a andar, foi apenas com dois anos e seis
meses. Depois vieram os movimentos repetitivos”, conta. Lizárraga é
ativista, engajado na difusão das informações sobre o autismo no Brasil e
em países latino-americanos.
Para ele, o autoflagelo é o momento
mais doloroso de quem lida com o autismo. “É a parte mais feia do
transtorno. Se ele não se faz entender, ele se agride porque ele não
consegue passar o que ele quer. Ele se bate no rosto, bate a cabeça na
parede. Aí tenho que pegar no colo, explicar. É um aprendizado o tempo
todo.”
O diagnóstico do autismo depende da observação clínica e
do comportamento do indivíduo, ao considerar o desenvolvimento motor,
psicomotor e social. O transtorno não é revelado por meio de exames –
usados para uma avaliação secundária, de problemas associados.
Em
2013, foi publicada uma atualização dos critérios autismo, dividindo o
transtorno em três graus: leve, moderado e severo. Atualmente, são duas
linhas de critério para o diagnóstico: deficit de comunicação e
interação social e padrão de comportamento repetitivo e/ou
estereotipado. Para ser diagnosticada com autismo, a criança precisa
apresentar os dois eixos.
“O comportamento repetitivo e
estereotipado é, por exemplo, ficar brincando com a roda do carrinho. Há
o balanceio – onde ele fica sacudindo para frente e para trás; o
flapping, gesto de ficar balançando as mãos”, explica o neuropediatra
Christian Muller.
Experiências
Fernando
tem 18 anos e já passou por diversos tratamentos para que pudesse
interagir melhor com o mundo ao seu redor. “Ele é alfabetizado, escreve,
consegue reproduzir qualquer coisa escrita. Conhece cores, números,
partes do corpo. Isso tudo sem falar. Muitos autistas não falam, a gente
não sabe [o motivo]. O aparelho fonador dele é perfeito”, conta a mãe
de Fernando e professora Adriana Alves, uma das criadoras da organização
não governamental Movimento Orgulho Autista Brasileiro (Moab). “Alguns
dos autistas que conseguem falar depois ou escrever relatam que a fala
para eles chega a ser uma coisa dolorosa”, acrescenta.
Adriana
Alves destaca a dificuldade em garantir matrícula na escola para
pessoas com autismo, um direito garantido pela Lei 12.764. “Brasília, a
capital do país, é um deserto para se tratar uma pessoa com autismo. A
gente tem aqui, na rede pública de educação, o melhor modelo de
atendimento para pessoa com autismo, é a chamada bidocência. A
secretaria de Educação consegue dar um apoio para pessoa com deficiência
muito maior do que as escolas particulares, mas, ainda assim, está
aquém daquilo que poderia ser”.
Tratamento
A
intervenção do transtorno se baseia em quatro eixos, em torno de uma
abordagem individual neurobiológica. Nesse contexto, há um trabalho
multidisciplinar, com neurologista, fonoaudiólogo, terapeuta
educacional, educador físico. O segundo aspecto é a abordagem
psicossocial, tratamento de atrasos mais evidentes. Em conjunto, há o
tratamento das comorbidades, os transtornos associados, como a
hiperatividade, a hipersensibilidade auditiva, problemas com sono,
transtornos alimentares, fobia social. O quarto eixo é o cuidado
psicoeducacional, em que se prepara a escola pra receber a criança
autista, com brinquedos, infraestrutura adequada, métodos e formas para
que o ambiente seja prazeroso para entreter e manter o aluno em sala de
aula.
O neuropediatra Clay Brites aponta a desinformação como um
dos principais desafios do transtorno. “Quando se dissemina
conhecimento, reduz preconceitos e resistência”, disse. “Atrapalha muito
o processo, o aparecimento de que o autismo é puramente emocional; que
basta dar carinho que melhora; que tirar alimento, melhora”, completa.
O
médico é enfático ao ressaltar a necessidade do diagnóstico e
tratamento precoces. “Esperar até os cinco anos [para iniciar o
tratamento] é uma tragédia com a criança com autismo. Um autista sem
nenhuma intervenção cedo é um indivíduo com sequelas a vida toda.”
Não
existe medicação específica para o autismo, os remédios usados no
tratamento têm objetivo de controlar os sintomas do transtorno, como de
comportamento repetitivo, a dificuldade de socializar ou as condições
associadas. As pesquisas relacionadas à medicação direta ainda estão em
nível laboratorial. Uma mediação que inibe mutação genética é
desenvolvida e já foi possível reverter sintomas do transtorno em ratos.
Síndrome de Asperger
O
personagem Sheldon Cooper, do seriado norte-americano The Big Bang
Theory, faz sucesso com seu estilo introspectivo, com muitas
dificuldades de interação social. O físico teórico tem dois doutorados e
um mestrado, mas é incapaz de compreender ironias ou sarcasmos. Além
disso, tem rituais e comportamentos repetitivos e muitas vezes
impróprios. A natureza de Cooper descreve uma manifestação branda do
autismo, a Síndrome de Asperger.
No Asperger, o comprometimento
poupa, de certa forma, a inteligência e a linguagem do indivíduo. “Eles
têm uma maior funcionalidade e mais autonomia para se adaptar aos
desafios sociais e acadêmicos. São pessoas inteligentes, mas socialmente
muito problemáticas. Não conseguem perceber a maldade dos outros, a
ironia, não entendem emoções. O autista clássico já tem fala
entrecortada, que não condiz com contexto, há uma desorganização de fala
muito grande, dificuldade maior na vida, na escola”, explica Clay
Brites.
Evolução
“O que eu tenho visto ao
longo desses anos atendendo autistas é que a grande diferença na
evolução de um autista é baseada no afeto. Então, que o tratamento passa
pelo afeto dos pais no autista. Eles são os grandes resgatadores. O
papel da família é fundamental do tratamento do autista. É muito difícil
ter um filho autista, mas aqueles que conseguem perceber pequenos
avanços é como se fosse uma roda positiva. O afeto da família é a janela
da alma, é ele que abre esse autista para o mundo”, defende o
neurologista.