Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Uma outra Samarco: indispensável e transparente

Segunda, 23 de maio de 2016
Do Observatório da Imprensa
Em 16/05/2016 na edição 903
Reportagem de Catarina Ferreira, Mariana Mallet e Maria Elisa Pinheiro; edição de Edna Dantas, com a contribuição de Angela Pimenta na apuração

Este é primeiro de uma série de cinco artigos analisando o papel da imprensa da região de Mariana, em Minas Gerais, na cobertura da tragédia causada pela avalancha de lama que soterrou a localidade de Bento Rodrigues, em novembro de 2015.  O caso de Mariana é parte de uma série de reportagens analisando as relações entre a imprensa regional e grandes empresas instaladas em 11 municípios brasileiros.

Pouco mais de um mês depois do maior desastre socioambiental do país, o jornal O Liberal, um veículo líder da região Mariana, Ouro Preto e Itabirito, em Minas Gerais, estampou a seguinte manchete on-line: Marianeses lançam campanha “Somos Todos Samarco”. Amplamente favorável à mineradora controlada pela Vale e pela australiana BHP Billiton, a matéria do dia 17 de dezembro de 2015 ocultava uma figura de linguagem – a metonímia – e encampava uma tese – a de que Mariana não pode viver sem a Samarco.


Conforme ensinam os linguistas, uma metonímia consiste em empregar um termo no lugar do outro. Quem lê a matéria descobre que no lugar de “marianenses”, termo que sugere participação expressiva da população da cidade, leia-se um grupo de “moradores e funcionários” da Samarco. Preocupado com o risco de desemprego na cidade depois que as atividades da mineradora foram embargadas pelo Ministério Público, o grupo resolveu ir às ruas para defendê-la.

A tese estava no terceiro parágrafo da notícia de O Liberal: “com o slogan ‘Justiça sim, desemprego não’, o grupo ressalta a ideia que, embora a Samarco seja responsável pelo ocorrido e deva arcar com os gastos e sofrer punições, a saída da mineradora só trará mais problemas à população.”


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A notícia minimiza a extensão do desastre, a responsabilidade e as punições aplicáveis à Samarco, a despeito do tsunami de 62 milhões de metros cúbicos de lama tóxica que matou 20 pessoas – das quais uma ainda está desaparecida – e causou um arco de devastação que atingiu 40 cidades do vale do Rio Doce, desaguando no litoral do Espírito Santo. Além disso, a notícia tampouco considera possíveis novos riscos resultantes do retorno das operações da Samarco.

Abraçada pela Samarco, pelo prefeito Duarte Júnior (PPS) e pelo presidente da Câmara Municipal de Mariana, Tenente Freitas (PHS), a tese se apoia no argumento de que por empregar cerca de quatro mil marianenses (entre empregos diretos e indiretos) e gerar cerca de 80% dos impostos recolhidos na cidade, a mineradora – cujas operações seguem embargadas – já merecia voltar a operar desde então, apenas seis semanas depois do desastre. 

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Opinião e informação

É compreensível, para não dizer legítimo, que tanto o governo local quanto a Samarco advoguem o retorno das operações da empresa. Quanto ao jornal, também é plenamente legítimo que ao cobrir o desastre, ele tenha uma opinião e venha a defendê-la em suas páginas.

Mas a forma como O Liberal tem aderido à causa da Samarco, da prefeitura e de um grupo de marianenses suscita questões importantes sobre sua independência editorial. Pois ao estampar o bordão “Somos todos Samarco”, O Liberal parece renunciar ao contraditório, inerente à tarefa primordial do jornalismo de informar seus leitores de forma equilibrada, ouvindo os vários lados da notícia.

A propósito, outro jornal marianense, O Ponto Final também demonstrou um viés pró-Samarco, ainda que mais discreto, na notícia “Assembleia discute Samarco e liberação de licenças ambientais”, na edição de 25 a 31 de março de 2016. Ao tratar de uma audiência pública da Comissão de Minas e Energia da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, O Ponto Final concluiu: “o objetivo é mostrar a importância de se criar uma força-tarefa para resolver o problema dos licenciamentos ambientais pendentes.”

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Mas conforme informava outro veículo marianense O Espeto em 21 de dezembro de 2015 na notícia “Omissão causou desastre em Mariana” , o Ministério Público de Minas Gerais atribuiu o rompimento das barragens a possíveis omissões da Vale e da Samarco no processo de licenciamento ambiental das barragens de Mariana.

Citado por O Espeto, o promotor Carlos Eduardo Ferreira Pinto disse: “descartamos a hipótese de acidente. Nossa investigação caminha no sentido de apuração dos objetivos que levaram ao rompimento. E relacionamos o ocorrido às omissões e flexibilização com que esse licenciamento foi concedido. Se tivessem sido tomadas todas as providências necessárias a seu tempo, provavelmente não haveria o rompimento.”

Parabéns à Samarco

Acrescente-se que tanto a Samarco quanto a prefeitura e a Câmara Municipal de Mariana são anunciantes de peso da imprensa local, como é o caso de O Liberal. Especificamente deste jornal, o trio tem comprando espaços publicitários de uma página ou meia página em sua versão impressa que é reproduzida na internet.

Procurada pela reportagem do Observatório da Imprensa, a editora do jornal Paula Karaci Taliba Silva não respondeu às perguntas, mas enviou a tabela de publicidade, que informa a tiragem média de O Liberal, de 11 mil exemplares semanais, e o preço dos anúncios de uma página, R$ 14.630, e de meia página, R$ 7.315,00.

Igualmente procurada por e-mail e telefone, a Samarco não respondeu. O prefeito Duarte Júnior enviou por e-mail sua avaliação da cobertura dos jornais locais como O Liberal, O Espeto e Ponto Final: ” Acho que os veículos daqui fazem o seu papel, trabalham com transparência, buscando levar realmente a informação correta para a população marianense. E isso é o que mais importa dentro do jornalismo de qualidade.”

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A leitura de O Liberal revela também que o viés pró-Samarco de sua cobertura precede o desastre. Datada de 5 de agosto de 2015, a reportagem intitulada “Vereadores de Mariana conhecem novo projeto da Samarco”, abordava uma apresentação feita pela empresa sobre o projeto de alteamento das barragens de Germano e Fundão, apontado como causa do rompimento das barragens.

Além de ignorar riscos ambientais, a matéria destacou a geração de empregos pela Samarco. “De acordo com o coordenador de construção do projeto, Eduardo Moreira, trata-se de uma continuidade operacional. Moreira afirma que estão previstas 550 contratações ao longo da execução das obras. As atividades já foram iniciadas e têm duração prevista de 24 meses.”

Já o presidente da Câmara Municipal de Mariana, Tenente Freitas (PHS) assumiu um tom elogioso: “Tenente Freitas destaca a transparência da empresa. ‘Demonstra que a Samarco tem a preocupação em mostrar o que tem feito em cada ação que vai executar,’ parabeniza ele. Tendo em vista a crise que estamos passando, o projeto pode ajudar a nossa comunidade com a geração de alguns empregos,’ destaca o presidente da Câmara.” Também procurado pelo Observatório, o Tenente Freitas não respondeu.

Limitações

É preciso reconhecer as limitações de um jornal local na cobertura de uma tragédia proporções bíblicas, como a de Mariana. Aliás, em sua primeira matéria de capa a respeito, datada do dia 6 de novembro de 2015, no dia seguinte ao desastre, O Liberal, cuja redação fica na cidade vizinha de Cachoeira do Campo, reproduz e cita adequadamente fontes como o portal G1 e a Rádio Itatiaia sob a manchete Barragem se rompe e distrito de Mariana, em Bento Rodrigues, é devastado.

O jornal voltou a assumir uma postura mais crítica ao reproduzir um texto da Agência Brasil sob a manchete ONU: resposta ao desastre de Mariana tem que ser mais ativa. Este também é o tom da manchete Novo deslocamento de rejeitos preocupa moradores da região, do dia 4 de fevereiro de 2016. Mas quem lê esta notícia constata tratar-se de um texto sob medida para externar a posição da Samarco e do prefeito Duarte Júnior, minimizando o novo deslocamento de rejeitos.

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A cobertura pró-Samarco de O Liberal prossegue. No dia 10 de março, ele publicou a notícia Prefeito de Mariana defende criação da frente pela reabertura da Samarco. Relegada ao último parágrafo da matéria, a indenização de R$ 20 bilhões cobrada pelos governos federal, de Minas Gerais e do Espírito Santo é tratada apenas como um “acordo coletivo.”

Diz o texto: “em linhas gerais, o acordo coletivo propõe 39 programas socioambientais e ações socioeconômicas para a reparação e a reconstrução das áreas afetadas. Segundo o documento, os impactados vão ser envolvidos em todo o processo, tendo, inclusive, participação nas decisões que serão tomadas pela fundação que irá gerir as ações restauradoras. A fundação será responsável pela gestão do fundo que será constituído com repasses financeiros da Samarco e suas controladas, Vale e BHP. A expectativa é que o fundo movimente R$ 20 bilhões em 10 anos.”

Numa reportagem de 14 de abril, Deputados estaduais discutem volta da Samarco, o mesmo jornal informa: “de acordo com a mineradora, a previsão é de que suas atividades sejam retomadas entre julho e agosto desse ano.”

A simpatia do jornal pela empresa parece ainda mais evidente na última edição de 13 de maio. Em uma matéria de capa Escolha do novo Bento Rodrigues, O Liberal trata da votação popular para um novo local sediar distrito devastado pela lama. Única fonte ouvida, o prefeito Duarte Júnior declara que “a partir de agora é preciso acelerar o processo para fazer ‘acontecer.'”
A mesma edição traz uma notícia sombria: “Suspeita de casos de suicídio entre ex-moradores de Bento Rodrigues é debatida por vereadores.” Publicada pelo jornal belorizontino O Tempo, a matéria sobre uma investigação do governo mineiro sobre possíveis mortes recebeu um tom condenatório dos vereadores ouvidos por O Liberal.

Segundo O Liberal, os vereadores pediram uma apuração local de Mariana sobre os supostos suicídios. Mas já se anteciparam em formar um juízo sobre a matéria de O Tempo. “A maioria dos vereadores achou a matéria tendenciosa, com o intuito de denegrir a imagem da mineradora, questionando o motivo do estado apurar casos de suicídio em Mariana. ‘A Samarco é um orgulho da cidade. Nós temos que lutar para a Samarco voltar, para que os mais de três mil funcionários não percam seu emprego, transformando a cidade mineradora num caos”, pontuou [o vereador do PSDB] Bruno Mol.”

Na mesma edição, em um anúncio de meia página em O Liberal, a Samarco se auto elogia. “Ouvir as pessoas e reconstruir”, diz a publicidade que trata da reconstrução de Bento Rodrigues e que chama o mar de lama de “acidente.”
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Catarina Ferreira, Mariana Mallet e Maria Elisa Pinheiro são alunas da disciplina de Ética, da Graduação em Jornalismo na Escola de Comunicações e Arte, da Universidade de São Paulo.