Segunda, 6 de junho de 2016
Flávia Villela - Repórter da Agência Brasil
A titular da Delegacia da Criança e do Adolescente
Vítima do Rio de Janeiro, Cristiana Bento, que assumiu a investigação
do caso de estupro coletivo
de uma adolescente de 16 anos na zona oeste da capital fluminense,
disse hoje (6) que a vítima foi violentada duas vezes: pelo estupro e
pela sociedade.
“Ela é vítima dos autores daquele ato de
violência e da sociedade, que subtraiu dela os valores morais, sociais”,
disse a delegada em audiência sobre cultura do estupro na Assembleia
Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). “Muitas meninas não sabem sequer
que sofrem abusos, como o caso dessa menina. Ela não sabia, não tinha
essa noção. Nas comunidades (favelas) isso é normal, ela está ali e tem
que se sujeitar a isso. Cresceu vendo isso.”
Para coibir os
estupros, Cristiana Bento defendeu a ampliação de campanhas de
conscientização e da fiscalização em vez de mudanças na lei “Nossas leis
são boas, precisamos apenas de sua execução e fiscalização.”
Segundo
a delegada, as investigações estão avançadas e os três homens que
aparecem no vídeo em que a vítima aparece desacordada e nua já foram
identificados e presos. Para ela, a apreensão de um celular na
sexta-feira passada (3) na casa de um amigo de um dos suspeitos foi
crucial para a investigação. “Para quem tinha dúvidas, com esse celular
elas se acabam. Vemos nitidamente o estupro de vulnerável ocorrendo.”
A
quantidade de homens que participaram do crime, 30 de acordo com a
apuração inicial, ainda não está confirmada, segundo a delegada. “Mas a
quantidade não importa tanto, mas sim que estamos identificando esses
personagens, que houve um abuso e que essa adolescente é vítima”, disse.
Cristiana
Bento lamentou que esse tipo de crimes seja subnotificado. “A maioria
dos adolescentes abusados, mulheres, não revelam por vergonha, por medo,
por não querer reviver aquele trauma. Nos crimes sexuais a palavra da
vítima é muito importante. Precisamos empoderá-la”, defendeu a delegada.
Perguntada
se delegado Alessandro Thiers, da Delegacia de Repressão a Crimes de
Informática, que estava à frente das investigações antes dela foi machista no tratamento à vítima e ao cogitar que não houve estupro, Cristiana defendeu o colega.
“Não
sei o que aconteceu, ele estava no início das investigações, deveria
ter tido algum dado que o levou para esse lado.” Para a delegada, o
machismo nas delegacias tem diminuído com cursos e palestras sobre a
questão do gênero. “Acho que estamos trabalhando e construindo esse
respeito.”
Já a deputada estadual Martha Rocha, que também é
delegada, classificou a atuação de Thiers de machista. “É fato que o
atendimento inicial dado a essa vítima teve um viés de preconceito.
Espero que se apure uma possível transgressão ou não do delegado
Alessandro Thiers”, disse, ao comentar que o machismo presente nas
delegacias brasileiras é fruto de uma sociedade machista.
Deputados federais acompanham o caso
A
comissão externa da Câmara dos Deputados criada para acompanhar a
apuração do crime também participou da audiência antes de se reunir com o
governador em exercício Francisco Dornelles e com o secretário estadual
de Segurança Pública, José Mariano Beltrame.
A presidenta da
comissão, deputada Soraya Santos (PMDB-RJ), disse que, com base nas
sugestões das diferentes comissões da Alerj e de projetos de lei sobre o
tema, o grupo apresentará amanhã (7) um relatório propondo medidas de
prevenção e punição para esse tipo de crime e de melhoria no atendimento
às vítimas.
Entre as propostas, segundo a deputada, a está de
endurecer as penas contra disseminação de imagens íntimas de mulheres
sem seu consentimento e a de criar um protocolo de atendimento de
mulheres vítimas de violência sexual. “Precisamos ter somente delegacias
femininas especializadas ou precisamos criar esse tipo de atendimento
em todas essas delegacias? Será que o melhor atendimento é nos
hospitais? Precisamos uniformizar um procedimento padrão para organizar
essas questões e termos ambientes melhores para essas mulheres.”
“Queremos
que este caso [do estupro coletivo no Rio] seja referência para tantos
outros casos anônimos que não têm as mesmas luzes e repercussão. Em todo
o Brasil também recebemos reclamações sobre o atendimento nas
delegacias”, disse. “Uma das medidas que está sendo estudada é uma forma
de punir aqueles que não sabem atender as nossas mulheres nas
delegacias”, adiantou.
O presidente interino da Câmara, Waldir
Maranhão (PP-MA), se comprometeu a colocar o texto em votação já na
próxima semana, caso o grupo consiga concluir o projeto a tempo de
apresentá-lo ao Colégio de Líderes na tarde de amanhã, quando será
discutida a pauta de votações. A comissão foi criada há apenas dois
dias.
Audiência pública
A professora de
direito da Universidade Federal do Rio de janeiro (UFRJ), Vanessa
Berner, foi uma das convidadas da audiência de hoje na Alerj e
demonstrou preocupação com a forma como os políticos vêm tratando as
questões relacionadas à igualdade de direitos entre homens e mulheres.
“Gênero
não é ideologia, mas um recorte que atravessa todas as áreas da nossa
vida, está entranhado na estrutura social”, disse. “Na nossa sociedade
as mulheres não são sujeitos, mas objetos de dominação masculina. A
inferiorização da mulher e o controle do seu corpo, de sua sexualidade é
uma forma de constranger a mulher socialmente. A cultura do estupro é
sobretudo um processo bem articulado de constrangimento social”,
analisou.
Vanessa Berner citou um dado do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea) segundo o qual ocorrem no Brasil 527 mil
tentativas ou estupros a cada ano, uma a cada 12 minutos, sendo que 70%
deles são cometidos por parentes, namorado, padrasto, marido,
companheiro ou do próprio pai da vítima.
A deputada federal
Jandira Feghali (PT-RJ) disse que o risco de retrocessos na luta contra o
machismo e a violência de gênero é grande diante da atual composição da
Câmara dos Deputados. “Não conseguimos mais manter a palavra gênero em
nenhum projeto, em nenhum plano estratégico, na educação, na saúde, em
lugar nenhum”, disse a deputada, ao citar como exemplo de retrocesso o Projeto de Lei 5069, do deputado afastado Eduardo Cunha, que criminaliza o “induzimento, instigação ou auxílio ao aborto”.
“Inclusive,
nos casos de gravidez por estupro, as mulheres e os profissionais de
saúde são criminalizados e a contracepção de emergência é suspensa”,
citou. Jandira defendeu a proibição de progressão penal nos casos de
crime hediondo, a introdução da questão de gênero nos currículos das
escolas e a reflexão sobre a imagem da mulher, dos travestis e
transexuais na comunicação brasileira que, segundo ela, incentiva a
cultura do estupro.
Participantes da audiência também denunciaram
o abandono de centros de referência para as mulheres vítimas de
violência sexual, de assistência social e de outros equipamentos da rede
de apoio dessas mulheres, crianças e adolescentes, como o atraso nos
salários de funcionários e falta de insumos básicos nesses locais, entre
outros problemas.