Terça, 7 de junho de 2016
Rede tem baixo nº de profissionais especializados e máquinas quebradas
Especialistas contraindicam medida; GDF afirma que problema é pontual
Fontes: Raquel Morais - Do G1 DF //// Blog do Sombra
Pacientes
internados em hospitais públicos do Distrito Federal têm "dividido"
sessões de hemodiálise em uma tentativa das equipes médicas de garantir
que – mesmo que parcialmente – todos possam receber o tratamento. O
problema estaria relacionado ao baixo número de profissionais
especializados no serviço e a grande quantidade de máquinas quebradas.
Especialistas alertam que a redução do tempo da terapia renal aumenta as
chances de insuficiência cardíaca e edema pulmonar.
O paciente tem direito a fazer o tratamento dele, de quatro horas
completo, tirar todas as toxinas do corpo dele, e sair de lá bonzinho.
... [Fazem isso porque] Antes ficar ele subdialisado a ficar sem
diálise, porque sem diálise ele morre. Mas o alvo é diálise completa e
efetiva"
Karime Veiga, coordenadora de Nefrologia da rede pública
A coordenadora de Nefrologia da Secretaria de Saúde, Karime Veiga,
afirma que ocorrências do tipo são exceção. "Tem alguns lugares em que
estava acontecendo isso porque às vezes tinha alguma máquina com
defeito, a reserva estava sendo utilizada e não tinha consertado a
outra, e às vezes precisava dividir uma máquina entre dois pacientes. O
termo que a gente usa é subdiálise, estavam subdialisando, não estavam
dialisando o tempo deles todo. Mas isso foi pontual."
Profissionais e associações de doentes renais denunciam outro cenário.
Preferindo não se identificar por medo de retaliação, uma servidora
afirma que em março as "dobradinhas" ficaram mais corriqueiras no
Hospital Regional de Santa Maria. Uma das quatro enfermeiras estava de
férias, e a escala não foi reprogramada. A unidade atende apenas
pacientes já internados ou na UTI. São 11 máquinas de hemodiálise, que
deveriam funcionar ininterruptamente.
"Após pressão dos sindicatos, a chefia fez remanejamento nos setores e
colocou novatos lá para treinarem. Precisa-se de mais enfermeiros e mais
técnicos de enfermagem nas UTIs. O problema mesmo é contratação de
pessoal", disse. "É lamentável ver esse tipo de situação. A gente não
estudou durante cinco anos para ver morte de paciente. O que a gente
quer é restituir a vida do paciente. É dolorido para o servidor. A gente
fica com as mãos amarradas."
A mulher conta ter visto parte dos internados com o quadro agravado por
causa da situação, além de mortes. Também preferindo não ser
identificado, um colega diz haver ao menos um compartilhamento de
máquinas por semana. "Você acaba tendo que sortear entre os pacientes,
porque na UTI todos precisam. Está uma situação bem frequente. Acontece
sempre."
De acordo com a Sociedade Brasileira de Nefrologia, o tempo médio de
uma sessão de hemodiálise é de quatro horas. Doentes crônicos fazem a
terapia três vezes por semana. O procedimento substitui parte das
funções renais: o sangue é filtrado (retirada de toxinas e água), a
pressão arterial fica controlada e o corpo mantém em equilíbrio os
níveis de sódio, potássio, ureia e creatinina.
Famílias contam que a situação é semelhante na regional de Sobradinho. A
ex-gerente de loja Alcione Bragança, de 53 anos, afirma conhecer essa
realidade. Ela faz hemodiálise há 20 anos, desde que descobriu ter
insuficiência renal depois de um check-up. O início do tratamento
ocorreu em hospitais da rede pública, onde chegou a ser submetida a
"dobradinhas".
"Você tem dois rins que funcionam 24 horas por dia nos sete dias da
semana. Nós só temos 12 horas por semana de funcionamento – que é nosso
tempo de máquina. Imagina você só tendo a expectativa de 12 horas por
semana e ainda perder metade, por ter que dividir esse tempo com alguém?
Que vida você vai ter? É pouco, não é nada", afirma.
O problema já havia sido denunciado à Câmara Legislativa em outubro do
ano passado. O presidente regional da Sociedade Brasileira de
Nefrologia, Marcelo Pereira Ledônio, afirmou na ocasião que desde 2013
alertava o secretário de Saúde para a necessidade de intervenção rápida
no atendimento a pacientes renais, com risco de as equipes médicas terem
de voltar a subdialisar pacientes. "É o que está acontecendo
novamente".
Médico no Hospital de Base e trabalhando há 14 anos na rede pública,
Ledônio nega fazer "dobradinhas". Ao G1, o nefrologista disse já ter
visto colegas optarem pela medida com a intenção de ajudar os pacientes.
Ele também criticou a culpabilização dos profissionais em vez da
responsabilização à secretaria.
"Você sabe que o que está fazendo [encaixado] só vai receber naquele
momento, mas não sabe como vai ser depois, porque ele vai voltar a
precisar dialisar e você não sabe se vai ter tempo livre, ou que ele vai
ficar sem dialisar, e ele precisa muito. E você precisa decidir quem
vai entrar e quem vai sair. Quando você não dialisa um paciente, vão
dizer que você não quis dialisar, que você dialisou de qualquer jeito.
Mas não somos máquinas, somos só instrutores. Se não temos máquina, não
temos como fazer", declarou.
Você tem dois rins que funcionam 24 horas por dia nos sete dias da
semana. Nós só temos 12 horas por semana de funcionamento – que é nosso
tempo de máquina. Imagina você só tendo a expectativa de 12 horas por
semana e ainda perder metade, por ter que dividir esse tempo com alguém?
Que vida você vai ter? É pouco, não é nada"
Alcione Bragança, ex-gerente de loja e paciente do SUS
O médico conta ainda que, mesmo sem ter acesso estatísticas às reais, é
possível notar um aumento no número de mortes no hospital desde que as
dobradinhas voltaram a acontecer. Ele conta que em março, de uma semana
para a outra, o número de pacientes em estado agudo internados para
tratamento renal passou de 15 para 5. Nem todos conseguiram alta.
"A mortalidade era uma, hoje é outra, provavelmente porque você faz
menos tempo do que nos que precisam de mais tempo de diálise", explica.
"[Outro exemplo: no dia 5 de abril] Tínhamos dois pacientes graves.
Ficamos discutindo para saber quem iria para a máquina. Por sorte uma
paciente faltou, então deu para pôr os dois. Se não, dialisaríamos um e
depois dialisaríamos o outro. Quando eu coloco um paciente para dividir
com outro, eu resolvo só naquele momento. Mas em curto, médio, longo
prazo, eu sinto o efeito disso. A gente tem uma equipe toda estressada,
porque a gente fica se perguntando o que vai fazer."
A coordenadora de Nefrologia diz reconhecer que a prática da
"dobradinha" foge ao ideal. "O paciente tem direito a fazer o tratamento
dele, de quatro horas completo, tirar todas as toxinas do corpo dele, e
sair de lá bonzinho", afirma Karime. "[Fazem isso porque] Antes ficar
ele subdialisado a ficar sem diálise, porque sem diálise ele morre. Mas o
alvo é diálise completa e efetiva."
Consequências da subdiálise
A terapia é indicada a pacientes que perderam 85% ou mais do
funcionamento dos dois rins e com isso não conseguem mais retirar o
excesso de água do organismo nem toxinas – que agridem, inclusive, o
cérebro . que agridem, inclusive, o cérebro. Entre os sintomas iniciais
do quadro estão falta de ar, fraqueza, perda de apetite, vômitos,
diarreia. Na lista dos mais graves estão edema pulmonar, doenças ósseas e
inchaço do coração.
Especialistas afirmam que maioria dos doentes acaba desenvolvendo
outros problemas em decorrência da insuficiência renal, como anemia,
osteoporose e desregulação da tireóide. A redução do tempo de diálise,
segundo o nefrologista do Hospital Santa Luzia Francisco Neves, afeta no
futuro a qualidade de vida dos pacientes renais.
"Com certeza ele vai ser prejudicado na saúde dele. Isso aí, sem dúvida
alguma, em algum momento vai ter impacto. Esse impacto vai ser de longo
prazo. Na primeira semana ele acumula um pouquinho [de toxinas, por não
terem sido retiradas], na segunda mais um pouquinho em cima do pouco,
na terceira, mais um pouquinho em cima do pouquinho acumulado em cima do
pouquinho. Isso sem dúvida traz problema a longo prazo."
Com certeza ele vai ser prejudicado na saúde dele. Isso aí, sem dúvida
alguma, em algum momento vai ter impacto. Esse impacto vai ser de longo
prazo. Na primeira semana ele acumula um pouquinho [de toxinas, por não
terem sido retiradas], na segunda mais um pouquinho em cima do pouco, na
terceira, mais um pouquinho em cima do pouquinho acumulado em cima do
pouquinho. Isso sem dúvida traz problema a longo prazo"
Francisco Neves, nefrologista
"É por isso que pacientes costumam ser muito preocupados quando, por
qualquer razão, se atrasam para a sessão e perdem um pouquinho do tempo.
Eles querem repor aquelas horas, porque isso vai trazer algum efeito
para ele", explica o médico. O profissional destaca ainda outras funções
renais: produção do hormônio que estimula a fabricação de hemácias
(glóbulos vermelhos) e de vitamina D, que absorve cálcio e fortalece os
ossos.
Presidente da Comissão de Bioética da Ordem dos Advogados do Brasil,
Felipe Bayma afirmou ao G1 que as frequentes trocas de gestão – foram
três secretários em pouco mais de um ano – contribuem para dificultar a
resolução de problemas no tipo. A entidade busca uma forma de viabilizar
soluções sem necessariamente apelar para a judicialização dos casos.
"É uma rede complexa e cheia de problemas", disse. "A gente não analisa
a coisa pontual, a gente analisa como um todo. O presidente [da OAB,
Juliano Costa Couto] vai se sentar com o pessoal da Secretaria de Saúde
ainda neste mês. As maiores denúncias são medicamentos, oncologia,
aparelhos quebrados, o acolhimento nas UTIs. Todo secretário que entra
muda muito o método de trabalho, o que dá para entender, porque é uma
questão social, mas a gente precisa correr para conseguir defender a
sociedade, que é a nossa preocupação."