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(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 20 de julho de 2016

David Harvey: O Brexit “deve ser interpretado como um grande voto de protesto”

Quarta, 20 de julho de 2016
Do Esquerda.Net
“Há algumas boas razões para as pessoas se interrogarem sobre para que querem esta UE quando ela faz coisas como fez à Grécia e está neste momento a ameaçar fazer a Portugal”, referiu o geógrafo marxista numa entrevista ao jornal Público.
Questionado sobre se “vê o Brexit como a democracia a funcionar, uma distorção da democracia em que as pessoas foram de alguma forma manipuladas ou uma forma de protesto contra as desigualdades”, David Harvey sublinhou que “em primeiro lugar, há uma questão relativamente ao que constitui a democracia”.

“Temos democracias parlamentares, mas a maioria das decisões é tomada noutros sítios, há um défice democrático nos EUA e na Europa”, acrescentou, defendendo que “o resultado deve ser interpretado como um grande voto de protesto”.

“É o equivalente a dizer ‘não’, e as pessoas teriam dito ‘não’ a praticamente tudo”, reforçou.

Segundo o professor de Antropologia e Geografia na Universidade da Cidade de Nova Iorque (CUNY), o “enorme descontentamento que foi canalizado para esse voto”, algum dele “não tem nada que ver com a UE, mas é contra a forma como as elites tomaram decisões”.

“Há algumas boas razões para as pessoas se interrogarem sobre para que querem esta UE quando ela faz coisas como fez à Grécia e está neste momento a ameaçar fazer a Portugal”, referiu David Harvey, assinalando que “era suposto ser uma união de ajuda mútua e parece ser uma união cada vez mais com os grandes a porem os pequenos em sentido”.

“Por isso, há algumas boas razões para o voto para lá das que são habitualmente referidas como a xenofobia. Há um lado de xenofobia, mas seria errado interpretar o voto como apenas o resultado disso”, concluiu.

“Há uma grande quantidade de riqueza que nos é extraída na vida quotidiana”

Durante a entrevista ao jornal Público, Harvey advogou ainda “que o descontentamento que surge no espaço em que vivemos é tão significativo como o que tem que ver com o desemprego”.

“A esquerda tende a enfatizar a questão do emprego e a desvalorizar os protestos quanto à qualidade de vida”, afirmou, lembrando que “muitos dos grandes protestos globais que surgiram nos últimos 15 anos têm que ver com a qualidade de vida nas cidades” e que “há uma grande quantidade de riqueza que nos é extraída na vida quotidiana”.

David Harvey desmontou ainda a falácia do propalado empreendedorismo, e dos starups, salientando que, “mesmo quando resulta, envolve imensa autoexploração”.

“Estamos a voltar às condições de trabalho do século XIX”

O geógrafo marxista frisou que “ler Marx hoje faz todo o sentido”: “De certa forma, estamos a voltar às condições de trabalho do século XIX, que é o que o projeto neoliberal pretendia: reduzir o poder do trabalho e pô-lo numa posição em que não tem capacidade para resistir a processos maciços de exploração”.

“Depois há o desenvolvimento de tecnologias que tornam o trabalho cada vez mais redundante”, apontou, acrescentando que “cada vez mais, como consumidor, eu é que faço o trabalho”: “Sou explorado no consumo. Acabamos com uma massa de população dispensável que não tem meios de emprego e que se vai safando com pequenos trabalhos aqui e ali”.

Dar dinheiro evitaria a crise bancária

Sobre a possibilidade da introdução de um rendimento mínimo, Harvey fez referência “ao que se passou com a crise financeira de 2007/2008”.

“As autoridades disseram basicamente isto: é preciso salvar o sistema bancário e a finança. Os bancos centrais avançaram, aumentaram as disponibilidades de dinheiro – a flexibilização quantitativa –, e esse dinheiro foi para o mercado de ações, puxou-o para cima, deu bons rendimentos às classes mais altas. Ora, podia-se ter feito o mesmo beneficiando as classes mais baixas”, advogou o professor de Antropologia e Geografia na CUNY.

“Apoiava-se o direito das pessoas a ter uma casa. E todas essas propriedades que foram parar às mãos dos bancos podiam ficar com as pessoas que precisavam delas. Com a crise, as classes mais altas nos EUA aumentaram o seu rendimento em 12%. Esses 12% deveriam ter ido para as classes mais baixas”, somou.

Segundo Harvey, “havia uma escolha clara, podia-se salvar os bancos e fazer com que as pessoas perdessem as suas casas ou ir ter com elas e dar-lhes dinheiro – e assim evitar-se-ia a crise bancária, porque as pessoas pagariam os empréstimos. Mas se na altura disséssemos isso, teriam dito ‘isso é ridículo’ e não o veriam como uma opção”.

É possível traçar circuito do dinheiro

Harvey afirma-se cético quanto à possibilidade de existir “um capitalismo justo e razoável é possível”. “Temos de ver a quantidade de ilegalidades e de roubos que acontecem. Deviam ser controlados, e é aí que o Estado entra, mas é muito difícil controlar muitas destas coisas como vimos com os Panama Papers”, sublinhou, marcando que “a ideia de que o capitalismo pode ser desenvolvido de forma honesta... a certa altura interrogamo-nos se isso é mesmo possível”.

O geógrafo defendeu, contudo, que é possível introduzir regras para controlar o sistema: “Não é impossível. A maioria das dívidas é em dólares, e, como vimos, o caso da bancarrota argentina e das negociações acabou nos tribunais de Nova Iorque, porque o contrato estava em dólares”.

“Nos anos 90, quando se defendia que se devia traçar o circuito do dinheiro, diziam-nos que era impossível. Depois do 11 de Setembro, os EUA começaram a investigá-lo e está provado que se consegue fazer. A questão é como vão usar essa informação”, avançou.