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(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 6 de julho de 2016

O caso Luiza Brunet

Quarta, 6 de julho de 2016
Do Blog do Vlad
Por Vladimir Aras
lei-maria-da-penha 
O drama de Luiza Brunet surpreendeu a todos. Não é novela; mas vida real. A atriz teria sido agredida pelo seu marido, o empresário Lírio Parisotto. O suposto crime de lesões corporais (art. 129, §9º, CP), ainda sob investigação a cargo do Ministério Público de São Paulo (MPSP), teria ocorrido em Nova York nos Estados Unidos, em 21.maio.2016.

Ao voltar ao Brasil, Luiza Brunet pediu providências ao Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (GEVID) do MP paulista, que obteve em seu favor medidas cautelares protetivas previstas na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006).
Segundo o art. 6º da LMP, “A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos“.

Diz o art. 22 da LMP, que, caso constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, uma série de medidas protetivas de urgência, entre elas o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida (inciso I), ou a proibição de aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, respeitado limite mínimo de distância entre estes e o agressor (inciso III).

Tais medidas são imprescindíveis para proteger as vítimas e impedir que maridos, namorados ou companheiros violentos voltem a agredi-las.

O MP paulista agiu de forma adequada e oportuna para proteção da suposta vítima, como deve ser. Uso o adjetivo “suposta” tendo em conta o princípio da presunção de inocência.
 
Deixo agora o caso concreto e passo para a hipótese abstrata. Aqui me interessa o tema da jurisdição. A questão é: as medidas de proteção previstas na LMP podem ser aplicadas em relação a fatos cometidos no exterior? Os crimes de violência doméstica podem ser objeto de persecução penal extraterritorial? A resposta para ambas as perguntas é sim, mas depende.

Sabe-se que um dos preceitos reitores da jurisdição é o princípio da aderência ao território. Isto é, os magistrados somente têm autoridade nos limites territoriais do Estado, onde este exerce sua soberania (territorialidade).

Contudo, crimes praticados fora do território brasileiro também podem ser submetidos a processo e julgamento no Brasil. O art. 7º do CP trata dos casos de extraterritorialidade da lei penal brasileira nas espécies incondicionada (inciso I) e condicionada (inciso II).

Um crime praticado por brasileiro ou brasileira no exterior se encaixaria na segunda hipótese (extraterritorialidade condicionada), objeto de duas das alíneas do inciso II do art. 7º do CP. De fato, ficam sujeitos à lei brasileira os crimes extraterritoriais que, por tratado, o Brasil se obrigou a reprimir, e também os crimes extraterritoriais praticados por brasileiro (nato ou naturalizado).
Art. 7º. Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro:

I – os crimes:

a) contra a vida ou a liberdade do Presidente da República;

b) contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito Federal, de Estado, de Território, de Município, de empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público;

c) contra a administração Pública, por quem está a seu serviço;

d) de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil;

II – os crimes:

a) que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir;

b) praticados por brasileiro;

c) praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados.
Se o autor do fato for brasileiro (critério da nacionalidade ativa), a premissa da alínea “b” do inciso II do art. 7º estará atendida. Num caso de violência doméstica, a alínea “a” também incidiria, pois o delito de lesão corporal em situação de violência contra a mulher é objeto do art. 7º da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, de 1994), promulgada no Brasil pelo Decreto 1.973/1996.

Segundo o §2º do art. 7º do CP, a aplicação extraterritorial da lei penal brasileira depende da presença cumulativa de certas circunstâncias. De fato, o agente deve entrar o agente no território nacional (ingresso no país); o fato deve ser punível também no país em que foi praticado (dupla tipicidade); o crime deve estar incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição (delito extraditável). Além disso, o agente não deve ter sido absolvido no estrangeiro nem ter lá cumprido a pena; e não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável.

Portanto, em qualquer caso cometido fora do País, o autor do fato (suposto criminoso) deve entrar no território nacional para que esteja presente a jurisdição extraterritorial do Estado brasileiro. Não basta que o agente tenha domicílio ou residência no Brasil; é indispensável que o suspeito esteja no território brasileiro para submeter-se à sua jurisdição, para fins cautelares penais e punitivos. 

Assim, se o agente não estiver em território nacional, a jurisdição extraterritorial (penal) do Brasil não se apresenta. Medidas cautelares criminais não podem ser deferidas por nenhum juiz brasileiro, porque sem jurisdição. Igualmente, está obstada a persecução penal, até que cumprida a condição do art. 7º, inciso II, c/c o §2º, alínea “a”, do CP.

Em tal cenário, a solução para garantir a segurança de qualquer vítima é considerar a jurisdição cível, ou seja, ter como presente a competência internacional da justiça brasileira, à luz do art. 21 do novo CPC e do art. 15 da Lei Maria da Penha:
CPC
Art. 21.  Compete à autoridade judiciária brasileira processar e julgar as ações em que:
I – o réu, qualquer que seja a sua nacionalidade, estiver domiciliado no Brasil;

LMP
Art. 15.  É competente, por opção da ofendida, para os processos cíveis regidos por esta Lei, o Juizado:

I – do seu domicílio ou de sua residência;

II – do lugar do fato em que se baseou a demanda;

III – do domicílio do agressor.
No RESP 1.419.421/GO, o STJ considerou possível aplicar as medidas cautelares da Lei Maria da Penha no âmbito cível:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. MEDIDAS PROTETIVAS DA LEI N. 11.340⁄2006 (LEI MARIA DA PENHA). INCIDÊNCIA NO ÂMBITO CÍVEL. NATUREZA JURÍDICA. DESNECESSIDADE DE INQUÉRITO POLICIAL, PROCESSO PENAL OU CIVIL EM CURSO.

1. As medidas protetivas previstas na Lei n. 11.340⁄2006, observados os requisitos específicos para a concessão de cada uma, podem ser pleiteadas de forma autônoma para fins de cessação ou de acautelamento de violência doméstica contra a mulher, independentemente da existência, presente ou potencial, de processo-crime ou ação principal contra o suposto agressor.

2.Nessa hipótese, as medidas de urgência pleiteadas terão natureza de cautelar cível satisfativa, não se exigindo instrumentalidade a outro processo cível ou criminal, haja vista que não se busca necessariamente garantir a eficácia prática da tutela principal. “O fim das medidas protetivas é proteger direitos fundamentais, evitando a continuidade da violência e das situações que a favorecem. Não são, necessariamente, preparatórias de qualquer ação judicial. Não visam processos, mas pessoas” (DIAS. Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012).

3. Recurso especial não provido. (STJ, 4ª Turma, RESP 1.419.421/GO, rel. Luis Felipe Salomão, j. em 11.02.2014).
Resolvida a questão da extraterritorialidade da lei penal, terminam aí as dúvidas processuais? Não, pois teríamos de cogitar sobre o juiz competente no Brasil (juiz natural). Sabe-se que, em crimes praticados no exterior, a competência é do juízo da capital do Estado onde por último houver residido o réu antes do crime, ou onde ele residir, na forma do art. 88 do CPP.
Art. 88.  No processo por crimes praticados fora do território brasileiro, será competente o juízo da Capital do Estado onde houver por último residido o acusado. Se este nunca tiver residido no Brasil, será competente o juízo da Capital da República.
Se o domicílio do suspeito for em Salvador, a competência será do juízo criminal da capital  baiana. Se o acusado tiver residência em Ilhéus, a competência continuará sendo do juiz de Salvador, com base no mesmo artigo.

No entanto, ainda será preciso saber se essa competência é da Justiça Estadual ou da Justiça Federal. Nem sempre a resposta mais óbvia é a correta.