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(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

A Vila Olímpica e a Vila Autódromo

Quarta, 3 de agosto de 2016
Do Esquerda.Net
O legado olímpico, para os mais pobres, são remoções, especulação imobiliária, militarização da cidade. Não adianta tapar os vazamentos da Vila Olímpica. A face real dos Jogos é a Vila Autódromo. Por Guilherme Boulos
 
“Vila Autódromo foi alvo de assédio contínuo: despejos, violência, intimidação. Maioria das 600 famílias foi removida para regiões distantes ou recebeu indemnizações insuficientes para comprar outra casa”
“Vila Autódromo foi alvo de assédio contínuo: despejos, violência, intimidação. Maioria das 600 famílias foi removida para regiões distantes ou recebeu indemnizações insuficientes para comprar outra casa”
 
Duas semanas antes do início dos Jogos Rio-2016, a Vila Olímpica destinada ao alojamento dos atletas recebeu atenção internacional. Problemas de acabamento e derrames de água fizeram as delegações da Austrália, Argentina e Suécia se recusarem a ficar no local.

Cinco vezes maior que a previsão original, o valor pago pelo poder público para usar a Vila saltou de 51 milhões para 254,9 milhões de reais. As obras foram feitas por um consórcio da Odebrecht com a Carvalho Hosken e tiveram um custo total de 2,9 bilhões de reais, financiados pela Caixa. A Odebrecht, lembremos, tinha na sua polpuda lista de doações eleitorais o prefeito do Rio, Eduardo Paes (PMDB), com o carinhoso apelido de “Nervosinho”.

Reportagem da ESPN, datada de julho de 2015, dizia que a promessa era de “instalações de alto padrão para as delegações, num nível nunca visto anteriormente na história dos Jogos”. Ficou na promessa.

Vila Autódromo também se tornou símbolo de resistência A Vila Autódromo também se tornou símbolo de resistência
 
Mas, apesar dos holofotes no caso, o maior problema da Olimpíada do Rio não é o derrame nas instalações da vila dos atletas. Antes fosse. O projeto da cidade olímpica veio acompanhado de segregação urbana e favorecimento dos interesses imobiliários, como aliás já havia ocorrido na Copa de 2014.

O caso mais emblemático desta lógica foi o da Vila Autódromo. Comunidade vizinha ao Parque Olímpico, a Vila Autódromo foi alvo de um assédio contínuo, com despejos, violência policial e intimidação por parte da prefeitura de Paes. A maioria das 600 famílias foi removida para moradias em região mais distante ou recebeu indenizações insuficientes para a aquisição de outra casa.

Mas a Vila Autódromo também tornou-se símbolo de resistência. Vinte famílias não arredaram pé, resistindo ao assédio, às pressões e agressões. Conseguiram permanecer no local. Maria da Penha, liderança desta luta, disse em entrevista recente ao “El País”: “As pessoas às vezes pensam no pobre como lixo para ser removido. Não somos lixo, somos pessoas com direitos que precisam ser respeitados”. Parece óbvio, mas não é: estima-se que mais de quatro mil famílias tenham sido removidas por obras ligadas direta ou indiretamente aos Jogos Olímpicos.

Muitas dessas remoções e obras para o evento convergiram com interesses imobiliários, servindo como instrumento de gentrificação em áreas valorizadas. A própria Vila Olímpica é expressão disso. Ao invés de optar por um projeto menos sumptuoso, que poderia ser convertido em habitação popular após os Jogos - a exemplo de várias cidades que sediaram o evento - os organizadores decidiram por um complexo na Barra da Tijuca, que já está sendo comercializado pelas construtoras como condomínio de luxo.

Além disso, a Olimpíada militarizou o Rio de Janeiro. Sob o argumento da segurança para os Jogos e a prevenção ao terrorismo, intensificaram-se as incursões agressivas nas favelas e a repressão aos trabalhadores informais. A letalidade da PM cresceu consideravelmente no Estado durante o último período. Os cariocas pobres são tratados abertamente como inimigos.

Como agravante, a Câmara aprovou o projeto de lei 5.768/2016, que cria foro especial para militares que cometerem crimes dolosos contra civis durante os Jogos Olímpicos. Se confirmado pelo Senado, o projeto livrará os militares de serem levados à Justiça comum por crimes que venham a cometer. O autor da proposta, deputado Julio Lopes (PP), afirmou que isso dará “mais liberdade e vontade” aos policiais.

O legado olímpico para os mais pobres é de remoções, especulação imobiliária e militarização da cidade. Não adianta tapar os derrames da Vila Olímpica. A face real da Olimpíada é a Vila Autódromo.

Artigo de Guilherme Boulos , publicado em Outras Palavras