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(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Ditadura Militar: MPF/SP denuncia médico legista que forjou laudo sobre morte de dirigente partidário em 1972

Quarta, 17 de agosto de 2016
Antonio Valentini endossou versão oficial e omitiu informações que comprovariam tortura a que Rui Pfutzenreuter foi submetido

O Ministério Público Federal em São Paulo (MPF/SP) denunciou o médico legista Antonio Valentini por forjar o laudo necroscópico de um preso político em 1972 e ocultar a verdadeira causa do óbito. Ele trabalhava no Instituto Médico Legal de São Paulo e foi responsável por examinar o cadáver do dirigente do Partido Operário Revolucionário Trotskista, Rui Osvaldo Aguiar Pfutzenreuter, capturado e morto por agentes da repressão. Apesar dos claros sinais de tortura no corpo, Valentini atestou, com informações falsas, a versão oficial de que o militante morrera após troca de tiros com policiais.

Pfutzenreuter foi preso e torturado em 15 de abril de 1972 a mando do então chefe do Destacamento de Operações de Informações do II Exército (DOI) em São Paulo, Carlos Alberto Brilhante Ustra, falecido em outubro do ano passado. Outros opositores ao regime ditatorial presos na unidade naquele dia relatam que o militante morreu após ser submetido a intensas sessões de tortura durante os interrogatórios, com a aplicação de golpes e choques elétricos e o uso de pau de arara.

Versão - O corpo foi encaminhado ao IML com solicitação de exame que indicava a versão dos agentes para a morte. Segundo o relato, Pfutzenreuter teria morrido ao reagir a uma abordagem policial e trocar tiros com os oficiais no Parque São Lucas, zona leste da capital paulista. O pedido de necropsia trazia anotada a letra “T”, utilizada por órgãos de repressão para identificar os mortos por motivos políticos, considerados “terroristas”.

Dez dias depois, Antonio Valentini emitiu o laudo necroscópico que apontou anemia aguda traumática como causa do óbito, provocada por tiros no braço e no peito. Os primeiros indícios de fraude vieram à tona quando o pai do militante, Oswaldo Pfutzenreuter, teve acesso a uma foto parcial do corpo em uma das várias visitas que fez aos órgãos oficiais em busca de informações sobre o filho. Ao notar hematomas que foram descartados no atestado de Valentini, ele chegou a escrever uma carta ao então presidente Emílio Garrastazu Médici denunciando as violações de que Pfutzenreuter havia sido vítima, entre elas a falsidade da versão oficial sobre sua morte.

A comprovação das fraudes veio com um parecer elaborado a pedido da Comissão Estadual da Verdade do Estado de São Paulo. Peritos avaliaram os dados que constam do laudo emitido por Valentini e constataram que o médico, além de ignorar as lesões causadas pela tortura, deixou de citar informações essenciais, como o trajeto das balas e sinais de hemorragia externa. Segundo os especialistas, o documento é “de péssima qualidade técnica, omisso e incompleto”.

“Diferentemente do que consta dos registros oficiais, Rui foi privado de sua liberdade, torturado e morto, sem poder oferecer qualquer espécie de resistência, como ocorrera em diversos casos semelhantes durante o período de repressão aos dissidentes da ditadura militar que assolou o país. Por essas razões, com vistas a ocultar tais circunstâncias, é que o laudo elaborado pelo denunciado omitiu informações de tamanha relevância”, escreveu a procuradora da República Ana Letícia Absy, autora da denúncia.

Imprescritível - Valentini chegou a ser alvo de um processo de cassação de seu registro no Conselho Regional de Medicina de São Paulo, mas a Justiça determinou o arquivamento do caso devido à prescrição na esfera administrativa. No âmbito penal, porém, o MPF destaca que a conduta de Valentini é imprescritível e impassível de anistia, uma vez que as violações foram cometidas em contexto de ataque sistemático e generalizado à população, em razão do regime ditatorial. O Estado tinha pleno conhecimento desse ataque, o que qualifica a prática como crime contra a humanidade. 

A Procuradoria pede que a Justiça não só condene Valentini por falsidade ideológica, mas também determine o cancelamento de sua aposentadoria, já que o médico se valeu do cargo público que ocupava para cometer o crime. Os mesmos pedidos valeriam para outros agentes que participaram da elaboração do laudo necroscópico falso caso ainda estivessem vivos, entre eles o médico legista Isaac Abramovitc e o então diretor do IML/SP, Arnaldo Siqueira.

O número processual é 0009980-71.2016.4.03.6181. Os autos estão em tramitação na 4ª Vara Criminal da Justiça Federal em São Paulo. O andamento pode ser consultado em http://www.jfsp.jus.br/foruns-federais/.