Sexta, 5 de agosto de 2016
Do Correio da Cidadania
www.correiocidadania.com.br
por Henrique Júdice
A falência moral do Estado brasileiro, tanto mais por arrastar a ala
esquerda de seu sistema de poder, tem como efeito colateral o
aferramento de parte hoje expressiva das classes médias a bandeiras
ultraconservadoras. Positiva como qualquer tomada de consciência, a
constatação de que a política institucional se resume hoje a uma disputa
de máfias tem levado muita gente ao erro de buscar nas igrejas –
partícipes destacadas desse jogo – uma referência moral.
Dois acontecimentos recentes ilustram a desorientação. Um é a torpe
tentativa de banir da escola (espaço de socialização e debate público
por excelência) a discussão político-ideológica. O outro é a recolocação
de crucifixos (símbolos de crença religiosa, algo íntimo e pessoal por
definição) em salas de julgamentos e audiências por ordem do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ). Nessa perspectiva, a política deve ser banida
dos espaços de sociabilidade e a religião deve presidir os recintos de
exercício do poder estatal.
A extrema-direita é estúpida o bastante para acreditar que aulas de
História, Filosofia e Sociologia (seus alvos preferenciais, embora já
tenha sobrado até para a Física Quântica), são, pelos conceitos e
conteúdo trabalhados, aulas de comunismo. E mais estúpida ainda por crer
que tendo o comunismo como disciplina escolar, as crianças aderirão a
ele.
A escola, onde elas passam 4 horas por dia, 5 dias por semana, 9
meses por ano, é o âmbito de menor influência na formação de suas
personalidades e valores – infelizmente, pois, mesmo péssima, ela quase
sempre é melhor que os ambientes onde essas mesmas crianças e
adolescentes passam as outras 20 horas do dia (família, igreja,
vizinhança).
Para os adolescentes, pesa mais o que veem do que o que ouvem: na
ótima escola em que cursei o 2º grau, a construção do conhecimento de
ciências naturais – baseada em experimentos, observação e reflexão sobre
o observado – nos ensinou mais que as (boas) aulas de ciências humanas
os saudáveis hábitos da contestação e da desobediência. Além disso,
adolescentes tendem a recusar imposições. Tanto é assim que das escolas
católicas – voltadas, elas sim, à doutrinação – saem mais ateus que das
públicas.
A impessoalidade esgrimida para interditar o aprendizado de conteúdos
escolares é descartada quando se trata de impor a juízes, advogados,
partes, testemunhas e funcionários a presença de um símbolo religioso
nos locais onde trabalham ou se decidem causas com impacto sobre suas
vidas, liberdades e patrimônios. A pretexto de não violar consciências,
um(a) professor(a) não pode mencionar em aula a existência de classes
sociais ou fenômenos como o imperialismo. Já sobre os partícipes de
processos judiciais (inclusive o juiz), deve recair o peso do Estado em
favor de uma crença religiosa, mandando-se ao diabo a neutralidade.
Foi o que o conselheiro Emmanoel Campelo, designado para o CNJ por
Dilma Rousseff em 2012 e em 2014, determinou em maio último, ao ordenar a
recolocação dos crucifixos que o Poder Judiciário do Rio Grande do Sul
havia retirado de suas dependências. O CNJ já autorizara outros
tribunais a manter tais símbolos, mas nunca antes obrigara um a tê-los
em suas paredes. Os demais conselheiros não chegaram a votar porque o
presidente do Tribunal de Justiça gaúcho, Luiz Felipe Difini, não
recorreu da decisão, preferindo receber as associações dos Juristas
Católicos do Rio Grande do Sul (AJCRS) e dos Dirigentes Cristãos de
Empresas (ADCE) para encetar seu cumprimento.
É questionável a licitude de juízes e promotores se agruparem com
base em confissão religiosa. E não se sabe qual a legitimidade da ADCE,
que aglutina o que há de mais obscurantista no empresariado e no
catolicismo (Opus Dei, cursilhos de cristandade), para interferir na
administração judicial.
Mesmo não endossando expressamente a assertiva de que “a ausência do
Crucifixo poderá acarretar descrédito, por parte da população cristã, às
decisões judiciais, podendo até levar ao fim o Regime Democrático”,
como alegado pela diocese de Passo Fundo e pelo ex-deputado do PDS
Fernando Carrion, Campelo acatou a tese de que a presença dele em órgãos
judiciais não denota privilégio a uma religião, mas sua retirada “é ato
eivado de agressividade, intolerância religiosa e discriminatório, já
que atende a uma minoria, que professa outras crenças”, como sustentava o
outro requerente, o deputado pelo DEM Onix Lorenzoni.
Campelo embasou sua decisão também num escrito do ex-ministro da
Justiça, ex-senador e ex-ministro do STF, Paulo Brossard, para quem
“estamos a viver tempos do Apocalipse”. Disso seriam indícios a retirada
dos crucifixos e “a circunstância de ser uma ONG de lésbicas que tenha
obtido a escarninha medida” (na verdade, a laicização dos espaços
judiciários havia sido pedida por seis entidades, apenas uma
representativa de mulheres homossexuais).
A decisão se reporta, ainda, ao seminário “O Estado laico e a
liberdade religiosa”, promovido em 2011 pelos catolicíssimos Cezar
Peluso (então presidente do CNJ) e Ives Gandra Martins Filho (membro
supernumerário da Opus Dei, então conselheiro). As conclusões do evento
reduzem a laicidade constitucional à simples separação formal entre
Estado e igrejas. Não reconhecem sequer obrigação de neutralidade
estatal plena quanto às diversas religiões, só não se admitindo a
proibição de alguma delas, embora sim o favoritismo da católica por
“razões históricas e culturais”.
Nesse mesmo seminário, Gandra Filho defendeu o ensino confessional,
afirmando que “a escola é a extensão da família, e os pais querem que os
filhos recebam valores religiosos”. À parte a inversão conceitual – já
que a escola se destina exatamente à socialização extrafamiliar das
crianças, não lhe cabendo ensinar o que os pais querem, e sim o que os
filhos precisam –, fica a dúvida sobre como isso se coaduna com a
bandeira da suposta neutralidade do ensino, desfraldada pelo mesmo campo
ideológico.
O melhor dos argumentos de Campelo, também extraído do artigo de
Brossard, é que Jesus Cristo “foi vítima da maior das falsidades de
justiça pervertida”. Embora – ao contrário do que querem ambos –, não
descaracterize o crucifixo como símbolo religioso nem legitime sua
presença (quanto mais compulsória) em espaços estatais, isso é verdade.
À luz de tal critério, o Judiciário (e por que não as escolas, se a
conotação é tão neutra?) deveria ter imagens de Nicola Sacco e
Bartolomeo Vanzetti, Julius e Ethel Rosenberg, Mumia Abu Jamal, Joe Hill
e Olga Benario (quem sabe também de Elisa Quadros, Igor Mendes ou
Rafael Braga Vieira?), sem que isso seja considerado proselitismo. Quem
sabe também dos prejudicados pelas tramoias judiciais da Opus Dei e,
claro, todas as vítimas da Inquisição?
Henrique Júdice Magalhães é jornalista, ex-servidor do INSS e pesquisador independente em Seguridade Social. Porto Alegre (RS).
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