Quinta, 11 de agosto de 2016
Fontes:
Site Saúde Popular
Le Monde Diplomatique
11/08/2016
O setor privado financia a grande mídia, que aceita o
jogo imoral por ele praticado. Ao assistirmos aos principais
telejornais, observamos o ataque orquestrado ao sistema público de
saúde, dando ênfase apenas às falhas, tratadas como corriqueiras. Já os
problemas do setor privado não são exibidos.
Por Leandro Farias*, do Le Monde Diplomatique
Passados trinta anos de um marco na história do Brasil, a 8ª
Conferência Nacional de Saúde, ainda estamos diante de paradigmas que
contribuem para a visão mercantil do setor. Durante a Conferência, foi
discutido a fundo o modelo de saúde presente na época e, em relatório
final produzido por políticos, gestores, profissionais e usuários do
sistema, apontou-se a necessidade de mudanças neste. Tal relatório
contribuiu para que, durante a Constituinte, fosse debatido capítulo
referente ao direito à saúde, presente em nossa Constituição Federal de
1988. Assim nasceu o Sistema Único de Saúde (SUS). Posteriormente,
surgiram as leis n. 8.080 e n. 8.142, que tratam da regulamentação,
financiamento e participação social no SUS.
Persiste, porém, o desafio da quebra do modelo médico hegemônico,
hospitalocêntrico ou complexo médico-industrial, que traz uma visão
avessa ao modelo preventivista elaborado durante o processo histórico
que antecedeu a criação do SUS, a chamada Reforma Sanitária. O primeiro
modelo alimenta a visão mercantil da saúde e segue as leis do mercado,
reforçando a indústria da doença formada por laboratórios, empresas,
planos de saúde, entre outros. Essa indústria promove a prática de
assédio aos profissionais da saúde desde sua entrada nas universidades,
com o custeio de viagens, cursos, congressos e até porcentagem na venda
de seus produtos. Sem falar na má remuneração destinada aos seus
profissionais, que assim optam pela quantidade em detrimento da
qualidade nos serviços disponibilizados.
Por deter recursos e poder, o setor privado financia a grande mídia,
que aceita o jogo imoral por ele praticado. Ao assistirmos aos
principais telejornais, observamos o ataque orquestrado ao sistema
público de saúde, dando ênfase apenas às falhas, tratadas como
corriqueiras. Já os problemas do setor privado não são exibidos. Não
obstante, visualizamos figuras públicas em propagandas que nitidamente
visam ludibriar a população. Assim, o imaginário de saúde como bem de
consumo adentra a sociedade, sobrepondo-se à ideia de saúde como um
direito fundamental.
Atualmente, estamos diante de surtos de diversas doenças como dengue,
zika, chikungunya, influenza A (H1N1), microcefalia, síndrome de
Guillain-Barré. E temos observado a alta procura por vacinas e
medicamentos. Isso é reflexo de diversas políticas de governos que se
sucederam à formação do SUS, que por sua vez parecem encarar a saúde
como “ausência de doença”, o que na prática se torna um “prato cheio”
para os que veem no setor uma oportunidade de faturamento monetário. Tal
visão política vai na contramão do conceito ampliado de saúde,
elaborado durante a 8ª Conferência, que traz uma relação direta entre
saúde e determinantes sociais, tais como condições de alimentação,
habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte,
emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços
de saúde.
Um retrato dessa realidade é a questão do saneamento básico no país,
traduzida em esgoto a céu aberto, lixo nas ruas e armazenamento
incorreto da água. Segundo levantamento feito em 2015 pelo Instituto
Trata Brasil, apenas 48% dos domicílios brasileiros têm coleta de
esgoto. Segundo o Ministério da Saúde (MS/Datasus), em 2013 foram
notificadas mais de 340 mil internações por infecções gastrointestinais
no país. E o custo de uma internação por essa patologia no SUS foi de
cerca de R$ 355,71 por paciente na média nacional. Estudos apontam a
existência de uma ligação direta entre a falta de saneamento básico e o
aparecimento de doenças. O último Levantamento Rápido de Índices para
Aedes aegypti (LIRAa), divulgado pelo MS em novembro de 2015, nos trouxe
a seguinte questão: no Nordeste, 76,5% dos focos do mosquito estão em
armazenamento de água para consumo – por exemplo, caixa-d’água. A região
concentra a maioria dos municípios com índices de risco de epidemia de
dengue.
Doenças como chikungunya, microcefalia e síndrome de Guillain-Barré,
que são provocadas pelo Aedes aegypti, demandam recursos e mão de obra
especializada, uma vez que os respectivos tratamentos são de médio e
longo prazo. Tais patologias, que culminam em maior demanda por serviços
e medicamentos, poderiam ser evitadas com ações de prevenção e promoção
da saúde. Falta foco nas condições socioambientais da população, sem
falar que o sistema público de saúde sofre de um subfinanciamento
crônico. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), cada R$ 1 investido
em saneamento gera uma economia de R$ 4 em saúde. Lembrando que
saneamento básico é um direito presente em nossa Carta Magna.
Ao analisarmos os números da economia, observamos que o setor privado
da saúde ignora a crise econômica que aflige o país, não se deixando
abater pela recessão. Ao contrário, o lucro do setor aumentou mesmo
diante da elevação das taxas de juros e da diminuição da renda dos
consumidores. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), o único setor que não sofreu queda nas vendas em
2015 foi o de artigos farmacêuticos, médicos, ortopédicos, de perfumaria
e cosméticos, que cresceu 3%. Os números da administradora de planos de
saúde Qualicorp são claros: a empresa obteve lucro de R$ 61,4 milhões
só no último trimestre de 2015, apresentando um avanço de 224% em
relação ao mesmo período de 2014.
Sabemos que saúde se faz por meio de recursos. Porém, uma sociedade
acometida por diversas patologias promove um efeito expressivo na
economia, pois, além de exigir maior aplicação de recursos no orçamento
da saúde, uma vez que o acesso aos seus serviços é algo oneroso, uma
quantidade significativa de trabalhadores deixará de produzir por conta
de sua doença. Ao pensarmos que diversos agravos podem ser evitados,
caso sejam respeitados os direitos e as garantias fundamentais presentes
em nossa Constituição, e que a existência de relações promíscuas
envolvendo membros do Executivo, Legislativo, Judiciário e empresários
impede o avanço de nossa sociedade por conta de interesses minoritários,
é válido fazermos a seguinte reflexão: quem lucra com a crise no
sistema de saúde?
*Leandro Farias: Farmacêutico Sanitarista da Fiocruz e coordenador do Movimento Chega de Descaso.