Quarta, 3 de agosto de 2016
Entrevista especial com Sérgio Gobetti
Do Instituto Humanitas Unisinos
“No ano passado, a conta de juros da nossa dívida
ultrapassou os 8% do PIB. Não é possível que o país conviva com uma
conta dessa magnitude. Não há superávit primário que dê cobertura
suficiente a um custo desses”, constata o economista.
Imagem: http://bit.ly/2afOHl6 |
Uma análise sobre o gasto público brasileiro nos
últimos 15 anos “mostra uma realidade bem diferente daquela imaginada
pelo senso comum, que é o de um governo inchado, que gasta
principalmente com o pagamento dos seus funcionários e tem muita gordura
para cortar”, diz Sérgio Gobetti, autor da pesquisa “Uma Radiografia do Gasto Público Federal entre 2001 e 2015”, publicada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea.
De acordo com o pesquisador, o gasto público no Brasil
“mais do que dobrou em valores reais na última década e meia, crescendo
a uma média de 4% ao ano acima da inflação”. Contudo, explica, “esse
não seria um problema tão grave se nossa economia também crescesse acima
de 4% ao ano (...). Mas nossa economia cresceu a uma média de apenas
2,6% ao ano entre 1997 e 2015, o que resultou em que a despesa pública
agregada acabou subindo de 26% para 33% do PIB”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Gobetti esclarece que o gasto que mais cresce e “consome mais da metade do orçamento primário
é o realizado para pagar benefícios previdenciários e assistenciais.
São mais de R$ 550 bilhões por ano. Nessa conta estão as aposentadorias,
pensões e auxílios do INSS, que custam R$ 440 bilhões por ano, os
benefícios para idosos e deficientes físicos de baixa renda, que custam
R$ 42 bilhões, o abono salarial e seguro-desemprego, que somam R$ 50
bilhões e, por fim, os valores despendidos com o Bolsa Família,
R$ 26 bilhões, que representam menos de 5% do total”. Esse gasto,
frisa, “que muita gente parece não enxergar ou enxerga e não gosta, é o
que mantém o chamado estado de bem-estar social, que é uma peça essencial em qualquer país minimamente desenvolvido”.
Gobetti defende um ajuste “estrutural” em alguns setores, como na Previdência Social,
estabelecendo uma idade mínima para as aposentadorias. “Sem novas
regras de aposentadoria, a despesa previdenciária vai crescer demais e
não será sustentável. Mas sabemos que a imposição de idade mínima tende a
atingir principalmente aqueles trabalhadores que começaram a trabalhar
mais cedo e que são mais pobres. Por isso, socialmente não é aceitável
que se faça um ajuste fiscal focado apenas na
previdência, sem tomar qualquer medida que atinja o último andar da
sociedade brasileira. É preciso pensar muito bem nas medidas e ampliar
seu escopo, buscando eliminar alguns privilégios tributários que criamos
e os custos inaceitáveis em que o governo incorre com sua política
monetária e cambial”, defende.
Sérgio Gobetti
é mestre e doutor em Economia pela Universidade de Brasília – UnB. É
Técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada - IPEA e atualmente está cedido à Superintendência de Seguros
Privados - SUSEP, do Ministério da Fazenda.
Confira a entrevista.
Sérgio Gobetti Foto: Fabio Pozzebom/Agência Brasil |
IHU On-Line - O que foi possível evidenciar com o estudo “Uma
Radiografia do Gasto Público Federal entre 2001 e 2015” acerca do gasto
público no país nesse período?
Sérgio Gobetti - O estudo tem por objetivo dar maior objetividade ao debate sobre o crescimento do gasto público,
evidenciando de forma transparente como essa despesa é composta e o que
explica seu crescimento ao longo da última década e meia. Os dados
mostram uma realidade bem diferente daquela imaginada pelo senso comum,
que é o de um governo inchado, que gasta principalmente com o pagamento
dos seus funcionários e tem muita gordura para cortar.
A maior prova de que não existe essa gordura é que em momentos de ajuste fiscal,
como o atual, o governo sempre acaba cortando os investimentos públicos
e outros gastos essenciais para a sociedade. Não que não existam
privilégios no funcionalismo público que mereceriam ser revistos, mas
esses privilégios em geral estão consolidados por direitos adquiridos ou
são protegidos por corporações poderosas e não representam uma fração
significativa do gasto público agregado.
Por outro lado, os dados mostram que o
gasto social do governo, seja na forma de benefícios ou de prestação de
serviços, foi consideravelmente ampliado e representa hoje a maior fatia
do orçamento. Esse é nosso grande dilema: o gasto público aumentou, mas
aumentou por boas razões, o que torna muito mais complexa a tarefa de
controlar seu crescimento.
"Esse é nosso grande dilema: o gasto público aumentou, mas aumentou por boas razões, o que torna muito mais complexa a tarefa de controlar seu crescimento" |
IHU On-Line - Quando se trata de analisar o gasto público, com o que se gastou mais no Brasil neste período?
Sérgio Gobetti - Como
eu mencionava, as pessoas têm uma falsa ideia de que o maior gasto do
governo é com salário e aposentadorias de servidores públicos e que esse
é o gasto que mais cresce. Nem uma coisa nem outra são verdades: o
gasto com servidores representa menos de 17% do gasto primário, que é o
gasto total não incluindo juros, e cresce menos do que os demais gastos.
O gasto que mais cresce e consome mais da metade do orçamento primário é o realizado para pagar benefícios previdenciários e assistenciais. São mais de R$ 550 bilhões por ano. Nessa conta estão as aposentadorias, pensões e auxílios do INSS,
que custam R$ 440 bilhões por ano, os benefícios para idosos e
deficientes físicos de baixa renda, que custam R$ 42 bilhões, o abono
salarial e seguro-desemprego, que somam R$ 50 bilhões, e, por fim, os
valores despendidos com o Bolsa Família, R$ 26 bilhões, que representam menos de 5% do total.
Esse gasto, que muita gente parece não enxergar ou enxerga e não gosta, é o que mantém o chamado estado de bem-estar social,
que é uma peça essencial em qualquer país minimamente desenvolvido.
Aliás, é interessante notar que esse modelo de proteção social que
parece incomodar os liberais brasileiros foi concebido justamente por um
liberal inglês, William Beveridge, em meados do século XX.
IHU On-Line - Segundo a
pesquisa, em termos de custeio, a área de educação tem sido mais
prejudicada que a área de saúde. Quanto se gastou com saúde e educação
no país nesses 14 anos? A que atribui essa disparidade nos gastos?
Sérgio Gobetti - Na realidade, o que ocorre é que os gastos federais com educação vinham crescendo mais do que os gastos com saúde devido a uma meta governamental de elevar os gastos nacionais em educação pública de 7% para 10% do PIB em uma década. Entre 2011 e 2014, o governo decidiu criar alguns novos programas, como o Pronatec e o Ciência sem Fronteiras,
e elevou significativamente o volume de bolsas de estudo, sem falar nos
financiamentos estudantis. Ocorre que, a partir de 2015, houve uma
interrupção nessa trajetória devido ao ajuste fiscal. Programas como o Pronatec,
o ensino infantil e os recursos de manutenção das universidades
federais, por exemplo, foram drasticamente afetados pela decisão do
governo de tentar reduzir seu déficit a qualquer custo.
Uma razão para que a educação tenha sido mais atingida pelos cortes do que a saúde é o fato de que o governo vinha gastando mais do que o piso de 18% das receitas estabelecido pela Constituição.
Então, como ele tinha essa folga legal, aproveitou para cortar. O mesmo
não era possível na saúde, porque o piso de gasto da saúde vinha sendo
obedecido estritamente e não dava qualquer margem para cortes. Por isso,
um dos objetivos do governo Temer com a proposta de emenda constitucional
recentemente enviada ao Congresso é revogar os dispositivos que
vinculam as despesas de saúde e educação com as receitas, submetendo-as a
um teto de crescimento de acordo com a inflação. Isso inevitavelmente
levará os gastos a encolherem em proporção do PIB.
IHU On-Line - Quando se analisa o atual gasto público, o que é possível evidenciar em relação à sua evolução histórica?
Sérgio Gobetti - O gasto público
mais do que dobrou em valores reais na última década e meia, crescendo a
uma média de 4% ao ano acima da inflação. Este não seria um problema
tão grave se nossa economia também crescesse acima de 4% ao ano, porque
isso possibilitaria estabilizar o gasto em proporção do PIB. Mas nossa economia cresceu a uma média de apenas 2,6% ao ano entre 1997 e 2015, o que resultou em que a despesa pública
agregada acabou subindo de 26% para 33% do PIB. Esse crescimento
expressivo não ocorreu, é claro, da noite para o dia ou em apenas um
governo, mas foi no último governo, de Dilma, que esse problema se agudizou, porque pela primeira vez depois de muitos anos as contas públicas fecharam no vermelho.
Ou seja, pela primeira vez as receitas
primárias do governo não foram suficientes para cobrir as despesas
primárias. E isso ocorreu não porque as despesas tenham crescido mais no
governo Dilma do que no de Lula ou FHC,
mas porque no governo Dilma as receitas cresceram muito menos. As
receitas cresceram menos porque a economia cresceu muito menos e porque o
governo Dilma concedeu muitas desonerações de impostos, imaginando que isso contribuiria para reverter a crise econômica.
E veja que isso não é uma opinião, mas é um fato, demonstrado por
números. Entre 2011 e 2015, a economia cresceu em média 1% ao ano, as
receitas caíram 0,1% ao ano e as despesas do governo cresceram 2,4% ao
ano. Nos oito anos anteriores, do governo Lula, a economia cresceu em média 4,1%, a receita 4,2% e a despesa 5,1%. Já no governo FHC,
a economia cresceu em média apenas 1,9% e a despesa 4,4%, mas a receita
cresceu 7,2% porque houve enorme aumento de carga tributária.
"O país acumulou nos últimos 10 anos, por exemplo, US$ 350 bilhões de reservas cambiais, recursos estes que estão aplicados em títulos do Tesouro americano, rendendo um juro próximo de zero enquanto pagamos um juro de 14% por nossa dívida pública. Essa brincadeira custa ao país nada menos do que 2,8% do PIB ao ano, algo como R$ 180 bilhões anuais" |
IHU On-Line - Dada a atual
situação das contas públicas, por que a pesquisa defende que um ajuste
fiscal não é necessário? Em contrapartida ao ajuste, o estudo sugere a
elaboração de uma agenda de reforma fiscal mais estrutural e mais
gradual. Em que consistiria e por que essa opção seria mais vantajosa
nesse momento?
Sérgio Gobetti - Pelos
números que eu acabei de expor, fica claro que não é possível
imaginarmos uma década a mais em que a despesa continue crescendo tanto
acima do PIB, como ocorreu no passado recente. Então, é claro que precisamos de um ajuste fiscal, mas aí é preciso entender duas coisas. A primeira é que o ajuste que precisamos é estrutural,
não adianta cortar investimentos públicos ou comprimir gastos de
manutenção das universidades por um ou dois anos porque isso não ajudará
em nada a equilibrar as contas e, ao contrário, pode até piorar, como
parece ter sido o caso de 2015 e 2016.
A segunda coisa é que um ajuste estrutural
como o que precisamos não se faz do dia para a noite, depende de
reformas e de uma espécie de pacto social, que torne equilibrada a
distribuição de sacrifícios na sociedade. Por exemplo, eu não tenho
dúvida de que nós precisamos de uma reforma da previdência
que estabeleça uma idade mínima para as aposentadorias, levando em
consideração o acelerado processo de envelhecimento populacional que
vivemos. Sem novas regras de aposentadoria, a despesa previdenciária vai
crescer demais e não será sustentável. Mas sabemos que a imposição de
idade mínima tende a atingir principalmente aqueles trabalhadores que
começaram a trabalhar mais cedo e que são mais pobres.
Por isso, socialmente não é aceitável que se faça um ajuste fiscal
focado apenas na previdência, sem tomar qualquer medida que atinja o
último andar da sociedade brasileira. É preciso pensar muito bem nas
medidas e ampliar seu escopo, buscando eliminar alguns privilégios
tributários que criamos e os custos inaceitáveis em que o governo
incorre com sua política monetária e cambial.
O país acumulou nos últimos 10 anos, por
exemplo, US$ 350 bilhões de reservas cambiais, recursos estes que estão
aplicados em títulos do Tesouro americano, rendendo um juro próximo de
zero enquanto pagamos um juro de 14% por nossa dívida pública. Essa brincadeira custa ao país nada menos do que 2,8% do PIB ao ano, algo como R$ 180 bilhões anuais.
IHU On-Line - Como o senhor
avalia a proposta da equipe econômica do governo interino de Michel
Temer, de propor um teto para os gastos públicos com duração de 20 anos?
Quais as consequências positivas e negativas de uma medida como essa?
Sérgio Gobetti -
Existem vários países europeus que também utilizam um teto para o
crescimento das suas despesas. Em tese, portanto, e considerando nosso
crescente gasto público, a ideia de um teto pode parecer positiva.
Ocorre que o teto proposto pretende evitar que o gasto cresça acima da
inflação, o que é algo muito restritivo. Lembremos que nosso gasto vinha
crescendo 4% ao ano acima da inflação e a proposta de teto pretende
reduzir esse ritmo para zero. É uma guinada muito radical e temerária,
porque deverá implicar o aniquilamento dos investimentos públicos e a
redução dos gastos sociais. Veja: não precisamos reduzir os gastos em
proporção do PIB, mas apenas impedir que eles continuem crescendo acima
do PIB.
Os países europeus, que eu mencionei,
também limitam o crescimento de seus gastos, mas limitam pelo
crescimento médio de seu próprio PIB, o que, no caso
brasileiro, significaria estabelecermos um teto de 2% a 3% de
crescimento real ao ano e não zero, como propôs o governo. Além disso,
esse teto só se aplica aos gastos primários, não atingindo os chamados
gastos com juros e todos os custos de políticas
monetárias e cambiais que estão diluídos na conta de juros, como os das
reservas cambiais, subsídios ao BNDES etc.
No ano passado, a conta de juros da nossa dívida ultrapassou os 8% do PIB e isso não se deve apenas a termos uma elevada taxa de juros,
mas também às políticas que eu mencionei, que se operacionalizam por
meio de crescente endividamento público. Não é possível que o país
conviva com uma conta dessa magnitude. Não há superávit primário que dê
cobertura suficiente a um custo desses.
IHU On-Line - Como se dá a
gestão do gasto público no país? Que pontos poderiam ser melhorados para
ter uma gestão mais eficiente?
Sérgio Gobetti - Eu
diria, em primeiro lugar, que existe um mito em torno dessa
possibilidade de aumentar a eficiência na gestão do gasto. Não que esta
não seja uma meta a ser perseguida, e todos os governos que eu conheço,
nos últimos vinte anos, anunciaram intenções de racionalizar os gastos,
mas os resultados nunca foram expressivos. Então, isso revela que o
aprimoramento da qualidade do gasto público é um desafio bastante
complexo e deve envolver iniciativas mais amplas do que as tomadas até
agora. Creio, por exemplo, que seja fundamental rever a forma como o
governo, o Congresso e a sociedade discutem e definem o orçamento público, baseado numa disputa de corporações por frações dos recursos disponíveis.
Não existe uma discussão sistêmica sobre
o orçamento e as prioridades do gasto público. Cada ministério tenta
obter o máximo possível de recursos para si, e o mesmo fazem as bancadas
no Congresso e cada parlamentar individualmente. Mas
modificar isso é algo muito difícil, quase impossível, de modo que resta
a alternativa de tentar colocar alguma ordem nesse processo a partir de
um órgão centralizador, como o Ministério do Planejamento. Se o governo
pelo menos conseguisse definir com clareza quais são suas prioridades e
o custo delas, a sociedade teria mais condições de emitir um julgamento
mais democrático e racional.
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"Se o governo pelo menos conseguisse definir com clareza quais são suas prioridades e o custo delas, a sociedade teria mais condições de emitir um julgamento mais democrático e racional" |
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Sérgio Gobetti - Acho que vivemos um momento difícil em nosso país, de muita polarização e no qual as pessoas não estão muito dispostas a pensar além dos pré-conceitos que possuem sobre as coisas. Além disso, as reformas propostas e o ajuste fiscal tendem a agudizar o que chamo de conflito distributivo em torno de quem vai pagar a conta pela crise. Espertamente, a FIESP saiu na frente lançando uma campanha em que diz não querer pagar o pato – puro cinismo, porque a FIESP e outras federações empresariais foram as principais beneficiárias das políticas de desonerações tributárias e subsídios
nos últimos anos. Essas políticas foram colocadas em prática com a
expectativa de que o empresariado utilizaria esses incentivos fiscais
para investir. E não investiram, levando nossa economia ainda mais para
baixo.
Então, agora que estamos tentando sair do buraco, é fundamental rever essa estrutura de incentivos e reformar nosso sistema tributário
de modo a torná-lo mais eficiente e justo. O que significa que quem
ganha mais deve pagar proporcionalmente mais imposto, premissa de
qualquer sistema tributário moderno e que no Brasil não é respeitado.
Por Patricia Fachin