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(Millôr Fernandes)

domingo, 25 de setembro de 2016

A Medida Provisória nº 746/2016 e a Reforma do Ensino Médio

Domingo, 25 de setembro de 2016
Por Aldemario Araújo — Advogado, Procurador da Fazenda Nacional, Professor da Universidade Católica de Brasília - UCB, Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília - UCB

 
Brasília, 25 de setembro de 2016
Como cidadão e professor universitário (por mais de dezesseis anos) tenho especial interesse pelos temas relacionados com a educação formal. Assim, diante da edição da Medida Provisória n. 746/2016 e da grande quantidade de informações parciais e desencontradas sobre a reforma do ensino médio  pretendida pelo governo do Senhor Michel Temer, resolvi analisar a questão diretamente na fonte, ou seja, no texto do referido ato normativo. Esse esforço produziu o quadro abaixo transcrito com o resumo das definições mais relevantes.

Importa definir alguns aspectos básicos para análise da proposta. São elas: a) forma de veiculação; b) situação do debate entre os especialistas e os milhões de interessados; c) modelos adotados em outros países e d) desconsideração da legitimidade, ou não, do governo do Senhor Temer (no mérito, as propostas não são necessariamente adequadas/positivas ou inadequadas/negativas por conta tão somente da assinatura veiculadora da referida Medida Provisória). 

Parece, pelo que pude pesquisar, que existe um considerável debate em torno da matéria entre os especialistas, os educadores estaduais e o Ministério da Educação. Existem inúmeras referências autorizadas e consistentes no sentido de que o desenho estrutural das mudanças apresentadas estão no rumo das melhores experiências internacionais, especialmente quanto ao ensino integral e a flexibilização da grade curricular. Apesar dessas constatações, não escapa de profunda censura a adoção de Medida Provisória para tratar do assunto. Afinal, o debate entre os especialistas não substitui a participação, decisiva e sem açodamentos, dos milhões de brasileiros diretamente interessados (notadamente, estudantes, familiares dos estudantes e professores).

Nessa linha, o sentido geral das propostas veiculadas é positivo. Busca-se a superação de um modelo anacrônico (com mais de uma dezena de disciplinas tratadas como um bloco), produtor de elevados índices de evasão e de uma enorme sensação de distanciamento dos estudantes do ambiente escolar. A escola em tempo integral e os itinerários formativos específicos estão bem mais ajustados a complexidade e a dinâmica da sociedade brasileira na atualidade, além de apontar para uma experiência de formação intelectual mais adequada aos perfis de cada estudante.

Subsistem, entretanto, aspectos profundamente preocupantes. Dependendo do rumo adotado em certas definições futuras o sentido geral da reforma pode migrar de um viés positivo para um sentido claramente negativo. São essas as questões mais sensíveis: 

a) os componentes obrigatórios da base nacional comum curricular serão fixados pelo Conselho Nacional de Educação. Observe-se que o ensino da arte, a educação física, a filosofia e a sociologia deixaram de ser obrigatórias, por lei, no ensino médio. Assim, dependendo do que for estabelecido pelo CNE, a desejável formação intelectual ampla e diversificada dos estudantes pode restar irremediavelmente comprometida; 

b) houve a supressão das seguintes diretrizes, no plano legal, para elaboração dos currículos do ensino médio: b.1) metodologias de ensino e de avaliação que estimulem a iniciativa dos estudantes; b.2) educação tecnológica básica (que abre espaço para a melhoria da infraestrutura escolar, notadamente em termos de laboratórios de informática); b.3) compreensão do significado da ciência, das letras e das artes; b.4) entendimento do processo histórico de transformação da sociedade e da cultura; b.5) reconhecimento da língua portuguesa como instrumento de comunicação e b.6) acesso ao conhecimento e exercício da cidadania. Essas diretrizes são cruciais para a realização do pluralismo, da participação, da solidariedade, da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da justiça, do combate ao preconceito e às desigualdades. Vale anotar que esses são fundamentos e valores expressamente inscritos no texto da Constituição (artigos primeiro e terceiro);

c) inexistência de diretriz legal sobre os conteúdos curriculares nas perspectivas de: c.1) desprezar a memorização estéril de dados e informações em favor do domínio dos princípios científicos e tecnológicos que norteiam a produção do conhecimento na atualidade; c.2) buscar a construção autônoma de ideiais e raciocínios e c.3) privilegiar conhecimentos efetivamente aplicáveis nos vários planos da vida social (doméstico, mundo do trabalho, finanças pessoais, exercício de direitos e cumprimento de obrigações, entre outros);

d) o ensino noturno, bastante precarizado e responsável por cerca de um terço dos atuais estudantes do ensino médio, especialmente trabalhadores, não foi abordado de forma específica. Rigorosamente, não foi apresentado um modelo aceitável para a melhoria efetiva das condições desse importantíssimo segmento;

e) não foram definidos com clareza e consistência os mecanismos a serem utilizados para o financiamento adequado da implantação, em larga escala, do modelo de ensino integral, particularmente diante do recente envio, pelo próprio governo Temer, da Proposta de Emenda Constitucional n. 241 (um evidente instrumento de arrocho seletivo limitador justamente das despesas primárias nas áreas sociais). Não custa lembrar que menos de 6% (seis por cento) dos estudantes cursam o ensino médio em tempo integral.

Portanto, a reforma do ensino médio ora apresentada somente será útil e proveitosa se devidamente ajustada, ainda no plano legal, para incorporar, ao lado do desenho estrutural alinhado com as melhores experiências internacionais, importantes e necessárias definições voltadas para um conteúdo curricular amplo, plural, profundamente humanista e conectado com a realidade social e tecnológica da juventude brasileira na atualidade e nas próximas décadas. Ademais, o ensino noturno e o financiamento do ensino em tempo integral reclamam a atenção devida.

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