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(Millôr Fernandes)

domingo, 25 de setembro de 2016

ONU Mulheres Brasil diz que pesquisa sobre estupro reflete a sociedade

Domingo, 25 de setembro de 2016
Heloisa Cristaldo - da Agência Brasil
A responsabilização da mulher por atos de violência sexual - medida pela pesquisa realizada pelo Datafolha, encomendada Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) - acendeu o debate em torno do assunto no país. Mais de um terço da população brasileira (33%) consideram que a vítima é culpada pelo estupro, informou o levantamento. A pesquisa mostrou ainda que 65% da população têm medo de sofrer violência sexual.

Para a representante da Organização das Nações Unidas (ONU) Mulheres Brasil, Nadine Gasman, o levantamento traz “dados muito fortes” e reflete a estagnação da sociedade brasileira em questões de gênero.


“Apontar que a mulher tem culpa em ser estuprada é uma constatação de que a sociedade brasileira tem avançado em muitos aspectos, mas segue machista, sexista e muito racista. A gente conhece as estatísticas de feminicídio. Tem aumentado mais a violência contra mulheres negras. É uma sociedade que ainda não acredita que mulheres e homens são iguais”, afirmou em entrevista à Agência Brasil.

“Essa questão é reveladora e temos que trabalhar muito para mudar as concepções de gênero. Temos que entender as construções sociais, de mulheres e homens, que são produtos de uma formação patriarcal, onde os homens têm vantagens que os colocam em uma situação de poder contra totalmente o que a humanidade dispõe de marco – de que nascemos livres e iguais”, completa.

O levantamento mostra ainda que 42% dos homens e 32% das mulheres entrevistados concordam com a afirmação: “mulheres que se dão ao respeito não são estupradas”, enquanto 63% das mulheres discordam.
O Datafolha fez 3.625 entrevistas com pessoas a partir de 16 anos, em 217 municípios. A coleta de dados foi feita entre os dias 1º e 5 de agosto deste ano. A margem de erro é dois pontos percentuais para mais ou para menos.

Violência sexual
A pesquisa aponta que a violência contra as mulheres é definida pelas Nações Unidas como qualquer ato de violência de gênero que resulte ou possa resultar em dano físico, sexual, dano psicológico ou sofrimento para as mulheres, incluindo ameaças, coerção ou privação arbitrária de liberdade, tanto na vida pública como na vida privada.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a violência sexual é “qualquer ato sexual ou tentativa de obter ato sexual, investidas ou comentários sexuais indesejáveis ou tráfico ou qualquer outra forma, contra a sexualidade de uma pessoa usando coerção”. A violência pode ser praticada por qualquer pessoa, independente da relação com a vítima, e em qualquer cenário, incluindo a casa e o trabalho. O ato pode acontecer em casa ou na rua.

Dados do 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontam que foram registrados 47.646 casos de estupro em todo o país em 2014, o que significa um estupro a cada 11 minutos.

Denúncia
Apesar do número de casos, a pesquisa destaca que a maioria das pessoas que sofre violência sexual não registra denúncia na polícia, o que torna difícil estimar a prevalência deste crime.

“Em termos regionais, o maior medo é verificado nas regiões Norte e Nordeste do país, atingindo 72% de toda a população. No entanto, se verificamos apenas as respostas das mulheres, notamos que 90% das mulheres que residem no Nordeste afirmam ter medo de sofrer violência sexual, seguidas de 87,5% da população feminina do Norte, 84% no Sudeste e Centro-Oeste e 78% no Sul do país”, aponta o documento.

O levantamento aborda a culpabilização pela violência sofrida pela mulher como uma reação frequentemente relatada, até mesmo quando elas recebem atendimento nos serviços de justiça, segurança e saúde. “A dificuldade de reunir evidências materiais do não consentimento, bem como o risco de revitimização durante os procedimentos legais - humilhação, julgamento moral, procedimentos de coleta de provas que expõem o corpo violado da vítima a novas intervenções – são desafios específicos relacionados à violência sexual”.

A coordenadora de projetos do Instituto Avon, Mafoane Odara, ressalta que a mulher não se sente acolhida em espaços de atendimento após situações de abuso sexual. “As mulheres não reconhecem esses espaços como pontos acolhedores. Se sentem revitimizadas, não se sentem respeitadas nesses lugares. Com isso, as mulheres se sentem deslegitimadas a denunciar”.

“Está na hora de a polícia falar mais sobre isso e da gente encontrar formas de acompanhamento das mulheres em situação de violência. Essa não é uma questão das mulheres, é uma questão da sociedade brasileira”, argumenta. “É importante olhar como as instituições corroboram para perpetuação de uma prática como essa e aí isso vai ser sentido pela população”.

Das pessoas entrevistadas, a metade não acredita que a Polícia Militar esteja bem preparada para atender mulheres vítimas de violência sexual. O resultado da pesquisa indica também que mais da metade da população (53%) acredita que as leis brasileiras protegem estupradores.

“Em um país em que persistem altos índices de desigualdade social e que ainda enfrenta o desafio do acesso ao ensino formal, pode-se estimar que o conhecimento sobre a legislação brasileira e sobre as penalidades atualmente previstas para os casos de estupro não seja amplamente difundido entre a população”, ressalta a pesquisa.

No Brasil, a pena para o crime de estupro varia de seis a 12 anos, podendo chegar a 30 anos, a maior pena prevista no ordenamento jurídico brasileiro em caso de morte da vítima. “Um atendimento acolhedor, melhores taxas de esclarecimento nas investigações e resolução dos casos que são denunciados poderiam ter um efeito mais positivo para o enfrentamento do problema e, ainda, tornar a população mais confiante no trabalho das instituições policiais e do Judiciário” diz a pesquisa.

A vítima
A pesquisa revelou que uma grande parcela da população considera as próprias mulheres vítimas de agressão sexual como culpadas por não se comportarem de acordo com uma “mulher respeitável”. A perpetuação da ideia de controle do comportamento e do corpo das mulheres faz com que a violência sexual possa ser tolerada diante da sociedade brasileira.

A pesquisa mostrou, ainda, que 42% dos homens concordam com a afirmação de que “mulheres que se dão ao respeito não são estupradas”, enquanto 63% das mulheres discordam. É bastante comum que o comportamento de quem foi vítima seja questionado com base no que se entende serem as formas corretas de “ser mulher” e “ser homem” no mundo.

A professora de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília (UnB), Valeska Zanello, ressalta o aspecto da “objetificação da mulher”.

“Uma coisa que é profundamente naturalizada na nossa cultura é o não protagonismo da mulher com relação ao seu corpo. É punido tanto o protagonismo com relação à própria sexualidade [quando ela não pode escolher se quer ou não fazer sexo e com quantos] e também quando ela não pode dizer não. Geralmente, quando uma mulher sofre violência sexual, se tenta descobrir algum signo na vida dela que desqualifique esse protagonismo e, principalmente, coloque em xeque a índole dela, se ela é uma pessoa recatada ou não. E é isso que vai definir se ela foi estuprada ou não. Para ter uma mudança efetiva, a gente vai ter que trabalhar as novas gerações”, opina.

Educação
A pesquisa mostra que 91% dos entrevistados concordaram com a afirmação de que “temos que ensinar meninos a não estuprar”. Para Valeska Zanello, a mudança desse conceito na sociedade brasileira se dará, de fato, por meio da educação. “Lei é importante, mas ela muito pouco efetiva. A cultura punitiva é muito pouco eficaz, porque, em geral, ela vai punir só aquela pontinha do iceberg. Para a gente mudar uma cultura, as leis não são suficientes. Isso só acontece por meio da educação”, finaliza.

“Uma das coisas mais importantes é que temos leis, políticas, programas, mas tem que trabalhar a educação formal e não formal e meios de comunicação nessa mudança de paradigmas da sociedade com relação a igualdade, especialmente entre homens e mulheres: a ideia de toda sociedade de todos e todas sejam iguais”, ressalta Nadine Gasman.