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(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

A república rentista

Quinta, 22 de dezembro de 2016
O rentismo impôs seu limite de maneira implacável ao antigo pacto de classe iniciado em 1994 e reforçado em 2003 com a vitória de Lula nas eleições presidenciais
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O orgulho burguês no Brasil assume formas mais modestas a cada dia. No passado recente, os economistas afirmavam os resultados da industrialização e com orgulho indisfarçável diziam que o país possuía o maior grau relativo de desenvolvimento capitalista na periferia latino-americana. Os mais desinibidos recordavam inclusive a “época de ouro” do desenvolvimentismo nacional. Naqueles tempos, os economistas gostavam de dizer que a indústria representava 25% do Produto (PIB). Atualmente, esta cifra não passa de 10%, com "tendência de baixa". Em consequência, agora lamentam a “desindustrialização”.

Há, de fato, algo novo após o Plano Real (1994). A inflação, astutamente considerada pela burguesia o pior inimigo dos trabalhadores, cedeu. No entanto, a corrida entre preços e salários é cada dia mais desfavorável aos trabalhadores revelando que não haverá paraíso na terra às maiorias. As razões foram muitas, mas o controle inflacionário deve-se em larga medida a elevadíssima taxa de juros e o super endividamento estatal. Em perspectiva, podemos observar com certa clareza que o desenvolvimento capitalista assumiu um caráter rentístico inédito. Antes de 1994, as formas de acumulação de caráter fictício existiam e eram bastante suculentas. O sistema bancário, por exemplo, cresceu com elevadas taxas de inflação, esta modalidade eficaz de extrair uma massa de mais valia dos trabalhadores. Agora, podemos ver que a modalidade de estabilização inflacionária pode também representar eficaz meio de extrair uma quota adicional de exploração dos trabalhadores produtivos. Enfim, os banqueiros sabem acumular riqueza e poder nos tempos de inflação elevada e comandam a orquestra nas épocas de baixa inflação. A superexploração da força de trabalho é a norma em qualquer conjuntura, claro está.

A dívida estatal – externa e, principalmente, a interna – é na atualidade um meio mais eficaz de acumular riqueza. A existência e mecanismos de reprodução da dívida garantiram, ademais, confortável pacto de classe entre as distintas frações do capital. No limite, foi possível mesmo assegurar posições subalternas para as classes populares – via programas sociais ou ganhos passageiros aos fundos de pensão – mas como qualquer um pode ver, a festa acabou. O rentismo impôs seu limite de maneira implacável ao antigo pacto de classe iniciado em 1994 e reforçado em 2003 com a vitória de Lula nas eleições presidenciais.

O desenvolvimento capitalista brasileiro acumula com a expansão da renda da terra, a superexploração da força de trabalho, os super lucros comerciais e todas as formas de rentismo possível. Este movimento reduziu a importância da burguesia industrial que cada dia assume feições de uma burguesia compradora. É uma sorte de burguesia cuja expressão mais acabada emergiu no México com a indústria maquiladora, com grau de integração ao mercado nacional não superior a 4%, ou seja, a arrasadora maioria das peças eram importadas e somente montadas em território mexicano para posterior exportação aos Estados Unidos. O caráter lumpemburgues da outrora burguesia industrial é inocultável: a FIESP tem como dirigente máximo um sujeito “sem indústria”. Mais importante ainda, a entidade apoia a linha de tucanos como José Serra para quem não há alternativa ao Brasil senão uma integração ainda mais estreita com os Estados Unidos. A retórica seguirá consolidando a ideia de que a “integração latino-americana” não produziu efeitos positivos, ocultando, obviamente, o fato de que 13 entre 15 maiores exportadores do Brasil para a Argentina (para dar apenas um exemplo) são empresas multinacionais. Macri abriu novo capítulo de endividamento na Argentina e, em consequência, as compras de carros produzidos no Brasil aumentaram em quase 35%!! Ainda assim, a retórica da lumperguesia e de seus políticos medíocres, seguirá sendo “anti-bolivariana” por razoes ideológicas.

Ora, o aprofundamento da dependência é consequência necessária da opção preferencial pelos Estados Unidos, conduzida por José Serra no governo de Temer, a face mais visível do caráter ilegítimo do governo liberal. A devastação industrial será ainda maior, o pagamento de royalties crescerá ainda mais e, não resta dúvida, a dívida estatal seguirá crescente par e passo com a perenização do ajuste sobre o gasto social e o investimento público. A burguesia industrial – que tantas ilusões despertou no passado – exibirá com mais força seu caráter lumpemburguês. Eis a razão pela qual o rentismo assumiu o comando da economia e impôs ao Estado a ideologia da austeridade fiscal que, na prática, seguirá sendo basicamente a redução de programas sociais historicamente minguados do petismo e permanente assalto ao estado por parte das frações burguesas (capital comercial, industrial, bancário, agrário) sob variadas formas. Os governos petistas praticaram superávits fiscais até 2013 num país marcado pela péssima qualidade do sistema de saúde, da educação, da cultura, da ciência e tecnologia, da segurança, etc. Atribuir ao petismo (Lula e Dilma) inspiração keynesiana a política econômica daquela década é ofender a memória do bom moço J.M. Keynes, mesmo quando os keynesianos no Brasil apoiavam efusivamente a política petista. O governo Temer pretende perenizar a austeridade sobre o povo não somente reduzindo os minguados programas sociais do petismo mas também reduzindo e retirando direitos elementares.   

Neste contexto, o governo de Temer não somente é ilegítimo. É também um governo que aprofundará o programa de austeridade e recessivo de Dilma. Portanto, é um governo que pelo caráter ilegítimo e apegado a perenização da austeridade sobre o povo, precisa ser derrubado. Mais do que “Fora Temer”, as lutas sociais precisam bradar o “Abaixo Temer” indicando que não somente a presidência é ilegítima, mas também um congresso nacional sabidamente atravessado pela corrupção de deputados e senadores que, nestas circunstâncias, não possuem autoridade para reescrever a modesta Constituição de 1988. O petismo já evidencia que não poderá encabeçar estas lutas, pois manifesta precoce e completo apego ao calendário eleitoral com o surrado bordão “Lula 2018”, caso o ex-presidente não termine na cadeia ou impedido pelos tribunais disputar a presidência. O PT seguirá sendo um partido da ordem e, ao que tudo indica, incapaz de “refundar-se” como ingenuamente alguns pretendem. À esquerda abre-se imenso espaço para atualizar o programa da necessária Revolução Brasileira e a emergência de uma praxis política renovada pelas exigências sociais das maiorias sem as ilusões disseminadas nos últimos 20 anos. Enfim, nenhuma ilusão criada a sombra do petucanismo pode permanecer diante da guerra de classes que a burguesia declarou contra nosso povo. 

A supremacia do rentismo em suas variadas formas não somente elucida o caráter lumpem da burguesia, mas evidencia que nestas circunstancias as formas de luta assumem também um caráter em aparência “excepcional”. Em consequência, podemos observar que mais do que uma aventura, a burguesia, premida pela crise e por esta transformação de caráter estrutural, avançou na destituição da presidente Dilma ainda sem respeito à lei. As formas jurídicas são irrelevantes e a despeito da composição do parlamento, o decisivo é entender que a atuação “ridícula” ou “patética” das declarações de voto dos deputados na votação do impeachment permitiu, na verdade, abrir as portas para avançar no assalto ao estado e também na superexploração da força de trabalho. As formas institucionais da representação liberal revelam até mesmo para o mais desavisado "eleitor" profunda crise de legitimidade que não poupa poder algum: judiciário, legislativo ou executivo. 

Portanto, as condições sociais exigem a renovação da práxis política de movimentos sociais e da esquerda. A república rentista não corresponde apenas a uma fase do ciclo do capital, supostamente hegemonizado pela fração financeira que, poderia em pouco tempo, dar lugar a nova expansão comandada pelo capital produtivo (nacional e estrangeiro). Há uma mudança estrutural em curso no capitalismo periférico cuja dinâmica esta assegurada pelo caráter rentístico do processo de acumulação, em plena correspondência com formas aparentemente degradadas de atuação política. A coroação deste processo assumirá no Brasil a forma de estreitamento de laços comerciais com os Estados Unidos que orientará a ação do governo Temer. É inútil saber se o país assassinará um tratado de livre comercio tal como Colômbia, México, Chile e Peru o fizeram. A política comercial se orientará em relação aos Estados Unidos em função da força do latifúndio que, em última instancia, é a fração do capital que garante o superávit comercial em larga medida e que também necessita assumir a política comercial estadunidense como ponto de sua própria estratégia. Obviamente, falta combinar com os gringos, especialmente após a vitória republicana recente. Tal como ocorreu nos demais países latino-americanos, a burguesia industrial perderá ainda mais protagonismo na luta de classes. A república rentista exige o fim das ilusões políticas. Aproxima-se, também no Brasil, um tempo conturbado em que os trabalhadores somente poderão contar com sua própria força. A tal "independência de classe" não se apresenta agora como um "desejo" ou aspiração doutrinária, mas como exigência social amparada no desespero, daqueles que somente poderão sair do abismo social em que se encontram a partir de sua própria e exclusiva força. 


Nota: versão ligeiramente modificada de artigo publicado na edição de junho/2016 da revista "Achados de auditoria" do Sindicato de auditores públicos externos do TCE-RS.