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(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

“Doutora, você é cubana?”

Segunda, 23 de janeiro de 2017

A médica Maysa Teotonio Simão compartilhou em sua rede social a estranheza de seus pacientes ao se depararem com ela, a primeira médica negra do município de Jandaíra (BA)  — Imagem: Arquivo Pessoal

Por Redação do Saúde Popular
23/01/2017
por Juliana Gonçalves, do Saúde Popular

“A primeira pergunta de quase 70% das minhas consultas nos meus 2 primeiros meses de atendimento médico no Programa Mais Médicos foi: “Doutora, você é cubana?”. Depois do meu: “Não, uai” – como boa mineira, sempre era a minha vez de perguntar: “Por que você está me perguntando isso?”. E as respostas eram de uma variedade impressionante. Algumas vezes culpavam meu black, outras vezes meu jeito de vestir, outras vezes meu sotaque (bem mineiro e bem brasileiro), alguns poucos tinham coragem de falar na lata que era minha cor da pele o motivo de estranhamento – esses eram os que eu mais admirava. Porém a grande maioria dos pacientes respondiam apenas: “Porque você é diferente”.” 


Dessa forma começa o post realizado pela médica Maysa Teotonio Simão que viralizou numa rede social no início de janeiro deste ano. O texto, que poderia ter tom de desabafo pelo incomodo das indagações insistentes, no entanto, foi um relato cheio de otimismo. “(…) que tenhamos cada vez mais médicos diferentes, ou melhor, que tenhamos cada vez mais médicos parecidos com o povo!“, escreve no trecho final.

Maysa conta que conversando com seus colegas de trabalho e pacientes, descobriu que o município  de Jandaíra (BA) nunca tinha visto uma médica negra antes do Programa Mais Médicos. Isso explica, segundo ela, o estranhamento, mas mais do que isso, reflete os laços afetivos que criou com os pacientes. “Acho que quando eles olham para mim, eles se veem e representatividade, sim, é importante, transformadora e revolucionária”, afirma.
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Maysa com seu paciente, Pedro Soares. “Um dos homens mais vivos e intensos que eu já conheci! Engraçado e festeiro”, conta. Imagem/Arquivo Pessoal
Em entrevista para o Saúde Popular, Maysa contou como decidiu cursar medicina, os desafios que enfrentou quando decidiu ocupar um lugar que socialmente não é destinado às pessoas negras e decidiu se tornar médica.

Saúde Popular: Como e por que escolheu cursar medicina? 
Maysa Teotonio: Lembro do momento exato que decidi ser médica. Acompanhava semanalmente uma amiga de igreja de minha avó Maria em suas visitas a um asilo perto da Igreja São Judas Tadeu, em Belo Horizonte. Eu tinha uns 15 anos e me divertia imensamente ao passar a tarde com aquelas senhorinhas e senhorinhos. Algumas vezes pintava a unha delas, ouvia histórias, às vezes só segurava a mão de alguns deles. Eu gostava do cuidar, do ouvir, do observar. Sempre gostei e achava que medicina era isso. Hoje tenho certeza que medicina é isso. Medicina é a grande ciência social do cuidar, do ouvir e do observar. Gostar tanto da sensação que tinha naquele local é que me fez querer fazer o curso de medicina.

Saúde Popular: Como é ser médica negra no Brasil?
Maysa Teotonio: Ser médica negra no Brasil é enfrentar o racismo brasileiro, como bem disse o professor Kabengele Munanga, um dos mais sofisticados, o “crime perfeito” – os próprios racistas não se reconhecem como tal e os negros tem sua negritude massacrada todos os dias – reconstruir a nossa negritude (que foi mutilada por todo esses anos de exclusão e marginalização social) é extremamente necessária e ela que nos prepara para enfrentarmos o dia-a-dia quando saímos do lugar destinado aos negros na nossa sociedade.

Saúde Popular: Fale um pouco da sua graduação.
Maysa Teotonio: Em uma turma de 160 estudantes, tivemos apenas 10 negros. É o empoderamento da nossa negritude que nos possibilita questionar o motivo disso. Sendo que a nossa turma era a primeira turma com cotas raciais (na época Bônus) na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A conta não fecha. Lembro que quando questionei isso em um grupo de amigas brancas, elas me contaram que nunca haviam percebido isso. Eu percebia isso todos os dias.

Saúde Popular: Houve algum episódio específico?
Maysa Teotonio: Sim, por isso que o empoderamento da nossa negritude é essencial. Para que questionemos. Foi o empoderamento sobre a nossa negritude que me permitiu questionar porque tive um único professor médico negro durante todo o curso. Foi o empoderamento sobre a nossa negritude que me permitiu questionar e problematizar quando uma professora me sugeriu que eu usasse o cabelo mais arrumadinho. Ou quando uma paciente se recusava a ser atendida por mim – em uma fase do curso onde os pacientes já eram atendido pelos alunos e os casos repassados aos professores – e no final da consulta, ouvir em tom de pressuposto elogio, que ”ela percebeu que conhecimento não tem nada relação com a aparência”. Apenas com o empoderamento sobre a nossa negritude poderemos continuar caminhando para as grandes transformações que almejamos.