Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O Galo da Madrugada e a privatização do carnaval do Recife

Sexta, 24 de fevereiro de 2017

Privatização do espaço público: propalado símbolo do Carnaval popular do Recife, o desfile do Galo da Madrugada chega a ser transmitido ao vivo em tv aberta para todo o Brasil. Mas há outro lado da moeda que não vai para o ar

por Laércio Portela*, no Marco Zero

No próximo sábado (25) centenas de milhares de pessoas vão tomar as ruas do Centro do Recife para o desfile do Galo da Madrugada, propalado símbolo do Carnaval popular e democrático da cidade. Nas TVs, mais uma vez a transmissão será ao vivo. Digna dos grandes espetáculos. Mas há outro lado da moeda que não vai para o ar. É que o entretenimento também é negócio. E os negócios no Recife teimam em desafiar os limites entre o interesse público e os interesses privados. Poucas vezes submetidos à mesma luminosidade do sol que queima os foliões no sábado de Zé Pereira.

Em um dos sites de divulgação do utde Pernambuco nada menos do que 23 camarotes privados são anunciados ao longo dos seis quilômetros do itinerário do bloco, com ingressos individuais entre R$ 160,00 e R$ 500,00. Alguns deles com mais de mil lugares. Espaço privilegiado é a Praça Sérgio Loreto onde fica o Camarote Oficial do Galo e o Camarote Downtown, cujo ingresso individual (open bar) estava sendo vendido a R$ 320,00 na segunda-feira (20). A praça é pública, mas o lucro é privado.

Em frente aos camarotes do Galo e do Downtown, na mesma Praça Sergio Loreto, dividida em duas pela Rua Imperial, a organização do bloco comercializa outros 66 camarotes de 20 lugares cada um. As vendas começaram em novembro por R$ 5.500,00 para o primeiro andar e R$ 7 mil para o segundo piso. Na semana pré-carnavalesca saíam entre R$ 7 mil e R$ 9 mil cada um deles.

Espaços cedidos pela Prefeitura

Os espaços públicos das ruas e praças por onde brotam os camarotes privados são cedidos pela Prefeitura ao Galo da Madrugada por meio de “termo de permissão de bem público de uso comum do povo”, pelo qual o bloco fica autorizado a “explorar comercialmente os camarotes e arquibancadas com vendas de ingressos” e a “explorar serviço de bar exclusivamente para os adquirentes dos camarotes e arquibancadas”.

A contrapartida do bloco ao Poder Público Municipal vem em forma de publicidade, garantindo 20% do espaço publicitário para as marcas oficiais da Prefeitura do Recife e do Carnaval da cidade.

Mas o apoio público e financeiro da Prefeitura ao Galo da Madrugada não para por aí. É comum que o Poder Público Municipal ainda repasse recursos diretos ao bloco por meio de cotas de patrocínio, tanto para o Carnaval quanto para outros eventos realizados pelo ente privado ao longo do ano. Em 2014, foram R$ 580 mil para o Carnaval e R$ 300 mil para o Forrozão do Galo. Em 2015, R$ 750 mil. A reportagem da Marco Zero Conteúdo questionou os valores relativos a 2016 e a 2017, mas não obteve resposta da Prefeitura.

A camarotização do Galo da Madrugada traz à tona muitas questões. Algumas de cunho sociológico, outras que expõem a linha tênue que rege as relações público-privadas no Recife.

Democracia racial ou apartheid?
Até que ponto a visão de Carnaval popular e democrático do Recife, em oposição ao Carnaval baiano das cordas e dos abadás, não passa de uma fantasia? Será que aqui, como lá, não impera o apartheid social? Negros e pardos pobres no chão, brancos e autoridades nos camarotes? O mito da democracia racial, peça-chave da narrativa propagandística do Galo, sobrevive à ressaca da Quarta-Feira de Cinzas?

E as relações público-privadas que colocam o bloco na rua? Até que ponto a cessão de espaços públicos para o bloco privado atende ao interesse público? Todo o processo não deveria correr de forma mais transparente? Com a divulgação dos custos totais do Poder Público e do lucro auferido pelos entes privados com a ocupação das ruas e praças públicas? Quais os termos da negociação comercial do Galo com outras entidades privadas, como os camarotes DownTown (Praça Sérgio Loreto) e Balança a Rolha (embaixo do viaduto Capitão Temudo), já que estamos falando da sub-cessão para exploração do espaço público? E por que, além de ceder espaços públicos, a Prefeitura ainda repassa verba em forma de patrocínio para o Galo?

Parador: alto faturamento, pouca transparência
A polêmica sobre o Carnaval privado em espaço público não está restrita à camarotização do Galo no sábado de Zé Pereira. De domingo a terça-feira, um dos espaços mais nobres do Centro do Recife também fica fechado ao acesso popular. Trata-se do Camarote Parador Itaipava, espaço de shows que toma o estacionamento situado ao lado do Armazém 14, na área não operacional do Porto do Recife.

A área é pública, mas está arrendada desde maio de 2012 por 25 anos ao consórcio Porto Novo Recife S/A. Ainda assim, a cessão do terreno de um ente privado para outro só pode ser feita mediante anuência do Porto do Recife, órgão público vinculado ao Governo de Pernambuco.

Numa área privilegiada à beira-mar e a 500 metros de distância do maior e mais importante polo público do Carnaval do Recife, o Camarote Parador Itaipava comercializa mais de 4 mil ingressos por dia. Na segunda-feira (20), os ingressos online estavam sendo comercializados entre R$ 270,00 e R$ 350,00 por noite. A mega estrutura vai receber em 2017 duplas sertanejas de sucesso, como Henrique/Juliano e Maiara/Maraisa; grupos de axé, como Banda Eva e Bel Marques; e bandas de rock como O Rappa e Capital Inicial. Frevo mesmo, só do lado de fora.

Nas páginas dos sites de venda online de ingressos, o Parador é exaltado pelo serviço privê e a localização privilegiada: “O Parador Itaipava é considerado o melhor Camarote do Recife, o espaço oferece ao folião ótima estrutura, open bar premium (Whisky Old Par, Cerveja Itaipava e Vodka). A festa acontece no Recife Antigo (Cais do Porto), principal região turística da cidade, onde está localizado o polo Marco Zero com o principal palco de shows do Carnaval de Recife”.

O Marco Zero Conteúdo pediu, mas não obteve junto ao Porto do Recife S/A cópia do contrato de cessão do espaço. Segundo o Porto do Recife S/A, o pedido precisa ser “formal”. Produtores ouvidos pela reportagem, que preferiram não se identificar, informaram que a área é cedida ao mesmo grupo de empresários desde 2015, tendo à frente Bruno Rêgo (BG Produções) e Augusto Acioly (Festa Cheia Produções e Propaganda LTDA). Acioly é sócio de Felipe Carreras, atual secretario de Turismo do Governo do Estado e ex-secretário de Turismo da Prefeitura do Recife.

O Porto do Recife diz que a cessão está respaldada pela Resolução Normativa número 07/2016 da Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários). No artigo 2o do Inciso VII, a resolução prevê “autorização de uso e delegação, pela administração do porto, de áreas e instalações portuárias não operacionais disponíveis, localizadas dentro da área do porto organizado, para utilização onerosa, a título precário, visando à realização de eventos de curta duração, de natureza recreativa, esportiva, cultural, religiosa ou educacional”.

Taxa simbólica, transtornos reais
Questionada pela reportagem da Marco Zero Conteúdo sobre o valor da taxa paga pelos empresários para a realização dos shows no Carnaval, o Porto do Recife apenas confirmou que “a utilização de uso é onerosa”, mas não divulgou o montante. Em matéria publicada na Imprensa em 2015, primeiro ano de funcionamento do Camarote Parador, o então administrador do Porto, Carlos Vilar, informou que a taxa naquele ano deveria ficar em torno de R$ 20 mil. Um valor apenas simbólico que fica para o Poder Público, considerando os milhões de reais em faturamento que o grupo privado obtém com a exploração comercial do local durante o Carnaval.

Nos bastidores, produtores se queixam da “reserva de mercado” do espaço para grupos empresariais ligados a Felipe Carreras. Também questionam o suposto caráter provisório da permissão de uso da área, considerando que vários shows com venda de ingressos estão sendo realizadas ao longo do ano pelo mesmo grupo empresarial, como acontece nos períodos de São João e de Revellion, o que configuraria, na prática, um acordo permanente de utilização desse espaço firmado entre o Porto Novo Recife e os organizadores do Camarote Parador.

Para além da disputa privada pelo espaço do estacionamento do Armazém 14, há questões mais diretamente de interesse público que também precisam ser levadas em conta. Estamos falando do impacto no fluxo de pessoas e na mobilidade urbana em todo o entorno do Marco Zero, também no impacto nos cofres públicos com a oferta de mais segurança e fiscalização de trânsito na região, onde antes havia um único grande palco público de shows e, agora, ele sofre a concorrência estrutural do maior palco privado do Carnaval do Recife.

Rede Globo e Praça da Independência: nada a ver
Não é de hoje que a ocupação privada dos espaços públicos no Carnaval gera polêmica e críticas de setores organizados da sociedade. Foram essas críticas que forçaram o cancelamento do Camarote da Rede Globo na Praça da Independência, em 2015, depois de 15 anos de funcionamento no local. Dias antes da realização do Carnaval, a Praça era cercada de tapumes para a instalação do Camarote da Globo e o acesso interditado à população em geral. Exatamente o que acontece hoje com a Praça Sérgio Loreto, tomada pelos camarotes do Galo da Madrugada e do Downtown.

Um ano antes do fim do Camarote da TV Globo, os tradicionais espaços vips da Prefeitura do Recife e do Governo do Estado no Galo da Madrugada, que perduraram inclusive durante as gestões municipais do PT, haviam sido desmobilizados. Era ano de eleições presidenciais e o governador Eduardo Campos (PSB) temia que as críticas das entidades civis aos altos custos do Poder Público com a manutenção dos camarotes VIPs (sempre abafadas pela imprensa local) ganhassem as manchetes dos jornais nacionais. Ele trocou o desgaste pelo anúncio de moralização dos gastos públicos apenas no último dos oitos anos de sua gestão no Estado.

Nos últimos três anos, produtores e advogados têm não só se manifestado contrários à cessão dos espaços públicos para a exploração da iniciativa privada durante o Carnaval, como estão pressionando cada vez mais os poderes públicos a prestar contas sobre a condução das negociações com os blocos e as empresas.

Acesso pago à praça pública
Em 2015, o produtor artístico Roger de Renor (Som na Rural) e a professora da Faculdade de Direito do Recife Liana Cirne Lins entraram com um pedido oficial de informações na Prefeitura do Recife sobre a cessão dos espaços públicos para a iniciativa privada. Na ocasião, a Prefeitura informou que a Praça Sérgio Loreto era cercada com tapumes para proteger o patrimônio público da degradação, especialmente por estar localizada num ambiente de grande fluxo de pessoas. O documento da PCR diz que medida semelhante é adotada em outras praças, monumentos, espaços culturais e prédios públicos no Centro da Cidade.

A resposta não satisfez Roger. “A Praça da República (em frente ao Palácio do Campo das Princesas) é cercada e quando acaba o Carnaval tiram-se os tapumes e ela está intacta, ninguém tem acesso ao local. Mas a Praça Sérgio Loreto, não. Ela é cercada e só entra nela quem paga. Quem paga ocupa a Praça. Ou será que os secretários de Cultura e Mobilidade da Prefeitura desconhecem que existem camarotes privados funcionando ali durante o Carnaval?”.

Muito pouco provável esse desconhecimento. Além dos anúncios de venda de ingressos em TVs e redes sociais, os camarotes do Galo acabaram substituindo na prática os camarotes da Prefeitura e do Governo de Pernambuco (que aliás é também apresentado no site oficial da agremiação como patrocinador do evento). Prefeito, governador, secretários municipais e estaduais, deputados, vereadores, empresários, jornalistas e artistas globais agora ocupam os espaços VIPs organizados pelo próprio Galo da Madrugada.

Elitização
Para Roger de Renoir, os camarotes privados em espaços públicos estão a serviço da separação de classes sociais.

“É inadmissível que logo no Carnaval mais popular da cidade, se privatize o espaço público porque tem gente que não gosta de se misturar com o povo. As pessoas mais importantes do Carnaval do Recife são os brincantes, não podem ser aqueles que têm R$ 300,00 para ficar afastados da rua. Não se pode cobrar para alguém ter acesso a uma praça pública. No Carnaval do Recife existe isso há mais de 10 anos no principal bloco de Carnaval. Bloco, é bom lembrar, que é subsidiado pela própria Prefeitura”.

Roger de Renor acredita que a repercussão do caso é menor na classe média recifense porque o isolamento se dá numa praça que fica no Centro da cidade, afastada, portanto, dos bairros mais ricos. “Imagina se isso fosse feito na praia de Boa Viagem? Imagina se um bloco de Boa Viagem, o da Parceria (antigo bloco de Carnaval do Grupo Bompreço que levava trios elétricos para a orla da praia no período pré-carnavalesco), por exemplo, recebesse a cessão de parte da praia e decidisse que só teria acesso ao local quem pagasse ingressos? Na prática é isso o que acontecia na Praça da Independência com a Rede Globo e o que acontece agora com a Praça Sérgio Loreto, com os camarotes do Downtown e do Galo”.

Ações na Justiça
Alegando a falta de amparo legal para cessão dos espaços públicos à iniciativa privada, o advogado Pedro Josephi moveu duas ações populares na Justiça no ano passado para forçar a Prefeitura do Recife e o Porto do Recife a anularem as permissões de utilização das áreas públicas e abrirem o acesso a toda a população.

A ação contra os camarotes na Praça Sérgio Loreto e nas áreas públicas no percurso do desfile do Galo tramitou na 4ª Vara da Fazenda Pública. Como tratava especificamente do Carnaval de 2016 e o pedido de liminar do advogado foi indeferido pelo Justiça, o processo perdeu o objeto. No caso do Camarote Parador, o processo começou a tramitar na 5ª Vara da Justiça Federal e depois foi distribuído para a 5ª Vara da Fazenda Pública por se tratar de um terreno pertencente a um órgão estadual arrendado à iniciativa privada.

O advogado alega que o interesse privado está se sobrepondo ao interesse público tanto no Galo da Madrugada quanto no Camarote Parador. Para Pedro Josephi, a desocupação da Praça Sérgio Loreto e de outras áreas públicas no trajeto do bloco traria melhores condições de deslocamento e segurança aos foliões. “A situação do Galo é alarmante. A Prefeitura permite a utilização do espaço público por uma entidade privada, apesar de o Galo ser um patrimônio público do Carnaval, e essa entidade ainda subloca esses espaços para serem explorados comercialmente por terceiros na Praça Sérgio Loreto e abaixo dos viadutos da Avenida Sul? Há uma evidente prevalência do interesse privado sobre o interesse público”.

Prestação de contas à sociedade

Outra questão que incomoda Pedro Josephi é a impossibilidade de a população acompanhar os detalhes das negociações firmadas entre o Poder Público e a iniciativa privada. “O mais grave é que não há uma prestação de contas para a sociedade, e nem mesmo para a Prefeitura, em relação a quantos camarotes estão sendo comercializados ao longo do desfile do Galo, quais os valores atribuídos a essas sublocações, quais são as compensações que essas empresas que estão sublocando o espaço estão dando na área de segurança e mesmo ao patrimônio em caso de dano. Quem vai assumir esses danos? Ao nosso ver tudo isso precisaria ficar mais claro e transparente para toda a sociedade”.

A reportagem da Marco Zero Conteúdo entrou em contato com as assessorias de imprensa do Tribunal de Contas do Estado e do Ministério Público de Pernambuco questionando se há procedimentos ou processos de acompanhamento das cessões dos espaços públicos para a iniciativa privada durante o Carnaval por parte desses órgãos. As assessorias responderam que os órgãos não desenvolvem ações ou fiscalizações específicas para esses casos.
Perguntas aguardam respostas

A falta de transparência fez o vereador em primeiro mandato do PSOL, Ivan Moraes, protocolar este ano um pedido de informações à Prefeitura do Recife. Ivan solicita cópia dos “termos de permissão de uso de bem público de uso comum do povo” celebrados entre a Prefeitura e o Galo da Madrugada nos últimos cinco anos e questiona qual instrumento legal autoriza que o Galo da Madrugada ceda ou subloque o espaço público para terceiros, como é o caso do Downtown na Praça Sérgio Loreto.

Também solicita informações sobre a relação de todos os camarotes que serão instalados em espaços ou prédios públicos nos bairros de São José e Santo Antônio no dia do desfile do Galo da Madrugada. E mais: cópias dos instrumentos que autorizam o uso do solo e instalação do Camarote Balança a Rolha, localizado embaixo do viaduto Capitão Temudo; do Camarote Spettus, na Avenida Dantas Barreto; e do Camarote Downtown, na Praça Sérgio Loreto.

O vereador do PSOL também quer saber quais as contrapartidas e os valores que a Prefeitura do Recife recebe para a cessão e instalação de camarotes privados em espaços e prédios públicos da cidade e se o Poder Público Municipal realizou algum estudo ou pesquisa sobre o impacto para os foliões dos camarotes privados em espaços públicos?

Na justificativa do documento de pedido de informações, Ivan Moraes lembra que para a realização de um desfile de um bloco carnavalesco das dimensões do Galo da Madrugada a administração pública arca com relevante gasto público na manutenção da ordem e da segurança pública, com os serviços de limpeza urbana, bombeiros, reordenamento do trânsito e de atendimento de saúde da população em geral, por meio do SAMU. “Todos esses gastos públicos são elevadíssimos e suportados por toda a sociedade”, afirma.

Jorge DU Peixe: Por que tanto Camarote?
Jorge dü Peixe, vocalista do Nação Zumbi (reprodução)

A camarotização do Carnaval do Recife em torno do polo Marco Zero incomoda o vocalista da Nação Zumbi, Jorge Du Peixe. A Nação Zumbi, que foi uma das principais atrações do polo no ano passado, este ano não vai tocar na rua para o público recifense. A banda fará nesta quinta-feira, dia 23, um show no Baile Perfumado, na prévia da Troça Elétrica, ao lado de Bixiga 70 e da orquestra de frevo de Henrique Dias.

Em postagem no facebook, Jorde Du Peixe relembrou a experiência da Nação Zumbi no Carnaval de 2016. “Botaram três atrações de peso no mesmo palco e o folião foi prejudicado. É culpa da gestão, da organização. Apesar de parecer grande, não cabe todo mundo. E colocam camarotes privados. É falta e cuidado com o folião. Tanto daqui quanto quem vem de fora porque o Marco Zero é a maior vitrine do Carnaval”.

Em resposta a Jorge Du Peixe, o prefeito Geraldo Julio (PSB) disse à Imprensa que não existiam camarotes privados no Marco Zero. “Não existe nenhum camarote privado na área do Marco Zero. A área é 100% pública e aberta à população”. Na verdade, o principal palco público do Carnaval do Recife está cercado de camarotes privados por todos os lados. O maior deles é o Camarote Seu Boteco, com vista frontal para o palco montado pela Prefeitura, open food e open bar e ingressos entre R$ 220,00 e R$ 250,00 por dia. Está lá no espaço do Marco Zero também o Camarote Palácio do Antigo, funcionando no antigo prédio do Santander Cultural, com três andares e palco exclusivo com bandas ao vivo.

O prefeito também esqueceu da existência do Camarote Parador, a cerca de 500 metros do palco do Marco Zero. Esse sim um espaço público arrendado a uma empresa privada que cedeu o espaço para outra empresa privada. E que se beneficia de toda a megaestrutura de segurança pública, ordenamento do trânsito e atendimento de saúde mobilizada pela Prefeitura do Recife e pelo Governo do Estado.

Pressão e monopólio
O que o prefeito não vê é o que mais chama a atenção do advogado Pedro Josephi. “Quando você tem uma festa privada como aquela, ela atrapalha o som do palco principal do Marco Zero, gera uma demanda maior de linhas de ônibus, logística da CTTU, de interrupção e organização do trânsito, gera uma demanda maior do escoamento das pessoas do Recife Antigo. As pessoas que afluem ao local para o Carnaval gratuito e popular são confrontadas com outra multidão que vem para o Carnaval privado. Em 2016, nós vimos a quantidade de arrastões e brigas pelas ruas”, relembra.

Para Pedro, ainda há um agravante quando falamos da produção cultural em Recife com o monopólio da cena por alguns poucos grupos. “O que nós estamos vendo é que o ramo de produção cultural de festas em Pernambuco é uma verdadeira caixa-preta, não se tem transparência de que forma são utilizadas essas áreas públicas e quem são os responsáveis por ganhar tanto dinheiro numa festa que deveria se democrática, popular e acessível para todos”.

Cultura do segregacionismo
A professora de pós-graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco, Cristina Araújo, volta no tempo até os Estados Unidos das décadas de 1940 e 1950, quando foram criados os primeiros condomínios fechados, para analisar a expansão do capital privado no sistema capitalista. Esse modelo chega ao Brasil nos anos 1980, na forma dos “alphaviles”, segundo a pesquisadora, “vendendo a ideia de segurança e qualidade de vida num cenário de cidades violentas e inseguras”.

Por trás dos condomínios fechados está a premissa de que o que é organizado pela iniciativa privada é bom e seguro e o que é cuidado pelo Poder Público é ruim e inseguro. Ela cita as calçadas esburacadas e sujas. Elas não precisam ser cuidadas porque o que prevalece é a lógica do automóvel, do bem privado sobre o espaço público.

A lógica segregacionista do condomínio fechado chega às festas populares como o Carnaval. Na Bahia isso é mais evidente com a disseminação de que as pessoas da “pipoca” são violentas e que se você é do bem deve brincar o Carnaval nos camarotes ou comprar abadás para ter a proteção privada do bloco.

“Recentemente essa lógica chegou por aqui, no Recife e em Olinda. A mesma concepção da segurança que se alimenta da ideia de distinção, ou seja, se você pode pagar então brinque entre seus pares. E tudo isso acontece com total conivência da Prefeitura e do Governo do Estado. Quem acaba se beneficiando é a iniciativa privada que vai transformando o que era público em privado e criando verdadeiras ilhas da fantasia, onde se convive apenas com os iguais, seja nos condomínios fechados, seja nas festas populares”, analisa Cristina.

E ela continua: “Dentro do sistema capitalista a iniciativa privada sempre vai tentar se expandir para obter lucro e caberia ao Estado o equilíbrio do jogo, atendendo aos interesses de todas as classes”. Uma regra que parece passar longe do jogo jogado no Carnaval do Recife.

*Laércio Portela É jornalista pela Universidade Católica de Pernambuco.