Sexta, 17 de março de 2017
Aldemario Araujo Castro*
O dramaturgo Dias Gomes construiu um personagem impagável. O Prefeito de Sucupira,
Odorico Paraguaçu, neto de Firmino e filho de Eleutério, notabilizou-se por ser
corrupto e demagogo. O palavreado utilizado por Odorico, particularmente na
interpretação magistral de Paulo Gracindo para a televisão, era peculiaríssimo.
Os últimos episódios da cena política nacional evocam as pitorescas construções
vernaculares de Odorico. Sem erro ou excesso, somos testemunhas estarrecidas de
um debochismo juramentado e
praticante.
“Emílio Odebrecht, dono da maior empreiteira do país, disse à
Justiça que o caixa dois não nasceu ontem. 'Sempre existiu. Desde a minha
época, da época do meu pai e também de Marcelo', contou. Como o patriarca
Norberto fundou a empresa em 1944, isso significa que a prática tem ao menos
sete décadas. Sobreviveu a quatro regimes políticos, sete trocas de moeda,
múltiplos arranjos partidários. 'Sempre foi o modelo reinante no país', resumiu
Emílio, que deve calçar uma tornozeleira eletrônica durante os próximos quatro
anos. Marcelo, o herdeiro, ocupa uma cela em Curitiba desde junho de 2015. Nos
próximos dias, as delações do clã abrirão um novo capítulo na crise brasileira.
A Procuradoria-Geral da República pedirá ao STF a abertura de ao menos 80 inquéritos
contra políticos. A lista, ainda secreta, assusta figurões do governo e da
oposição. Todos se beneficiaram do mesmo 'sistema ilegal e ilegítimo de
financiamento', para usar a expressão cunhada pela própria Odebrecht” (http://goo.gl/rT6CR6).
Os principais caciques do PT, PMDB, PSDB e
outras siglas partidárias menos visíveis ensaiam publicamente o discurso da
fuga. Ouvem-se as desculpas mais esfarrapadas, tais como: “caixa dois é
diferente do crime puro e simples de corrupção” e “[a prática do caixa
2] é eticamente reprovável, mas não se confunde necessariamente com corrupção".
Para espanto geral, a operação em curso para
abafar as consequências negativas do envolvimento dos principais atores da
política nacional conta com o solícito apoio público de membros da cúpula do
Poder Judiciário. O polêmico, para dizer o mínimo, Ministro Gilmar Mendes, não
só participa de viagens, reuniões e almoços com a fina flor dos mandatários
envolvidos de corpo e alma com os mais variados e graves ilícitos penais como
declara para a imprensa que “[o caixa 2] tem que ser desmistificado"
e "vai ter que se fazer alguma coisa".
E a “coisa” toma corpo. Sob o pomposo rótulo de
“Reforma Política”, Temer, Maia, Eunício e Gilmar, entre centenas de outros
nomes de escalões inferiores, buscam a “solução” para o financiamento passado e
futuro das campanhas eleitorais. No cardápio de opções constam: a) “anistia” do
caixa 1; b) anistia do caixa 2; c) inexigibilidade de conduta diversa; d) excludente
de ilicitude e e) imunidade para toda e qualquer forma de financiamento
eleitoral. Outras fórmulas serão bem recebidas. A criatividade jurídica
eficiente para o malfeito nesse campo será muito bem recompensada, notadamente
se for suficientemente ampla para abarcar os crimes de corrupção e lavagem de
dinheiro.
A sociedade civil organizada acompanha e
denuncia as manobras evasivas urdidas nos porões fétidos da grande política
nacional. Eis um emblemático exemplo: “Enquanto a população anseia pela
punição severa de crimes cometidos pela classe política, na esteira da
megainvestigação da Operação Lava Jato, membros do Congresso rumam na contramão
do povo e tentam se salvar da maneira mais antirrepublicana, aprovando projetos
e alterando legislações em vigor para salvar suas peles. Esta é uma das
constatações do presidente da Associação Nacional de Peritos Criminais Federais
(APCF), Marcos de Almeida Camargo, entidade que tem papel determinante na
resolução de crimes em todas as esferas da administração pública” (http://goo.gl/9IzAR3).
Esses episódios grotescos se somam a outros
tantos casos recentes. O eterno líder do Governo, Senador Romero Jucá, foi
protagonista destas três pérolas: “Se acabar o foro, é para todo mundo.
Suruba é suruba. Aí é todo mundo na suruba, não uma suruba selecionada” (http://goo.gl/w8Xnyu), “Tem que resolver
essa porra... Tem que mudar o governo pra poder estancar essa sangria” (http://goo.gl/zcp2D5) e “Nós não vamos
parar. Nós vamos trabalhar, vamos cumprir a nossa tarefa e vamos melhorar a
vida dos brasileiros” (http://goo.gl/ufV6Cv).
O Primeiro-Ministro, Eliseu Padilha, não ficou
atrás. “Em palestra para funcionários da Caixa Econômica Federal, o ministro
Eliseu Padilha (Casa Civil) explicou o funcionamento da engrenagem fisiológica
que permite ao governo de Michel Temer dispor de maioria no Congresso. Em
timbre de galhofa, Padilha usou como exemplo o preenchimento do cargo de
ministro da Saúde. Contou que, para obter o apoio do PP, descartou a nomeação
de 'um médico famoso de São Paulo' para acomodar na poltrona o deputado Ricardo
Barros (PP-PR), um engenheiro civil. (…) Padilha lembrou que, na composição da
primeira equipe do governo Temer, havia uma decisão de nomear ministros
notáveis em suas respectivas áreas. A pasta da Saúde seria do PP. Mas a legenda
foi alertada para o desejo do presidente de ter na poltrona um profissional que
fosse 'distinguido'. 'Aí nós ensaiamos uma conversa de convidar um médico
famoso em São Paulo', relatou o chefe da Casa Civil, sem mencionar o nome do
doutor Raul Cutait./Segundo Padilha, o PP mandou um recado para Temer: 'Diz
para o presidente que o nosso notável é o deputado Ricardo Barros.' Portador da
mensagem, o ministro aconselhou o amigo a ceder ao partido, campeão no ranking
de enrolados no escândalo da Petrobras. 'Nós não temos alternativa', disse Padilha
a Temer, realçando que o objetivo do governo era obter 88% dos votos no
Legislativo./'Vocês garantem todos os votos do partido em todas as votações?',
perguntou Padilha. E os representantes do PP: 'Garantimos.' O ministro diz ter
encerrado a negociação nos seguintes termos: 'Então, o Ricardo será o notável'“
(http://goo.gl/IOr6pC).
O que existe de comum nessas situações, como foi
destacado na hipotética frase inicial de Odorico, é o menosprezo pela ética,
pelo senso de ridículo e pela censura pública. Esses atores políticos nem coram
para desdenhar escancaradamente do mais lídimo e crescente sentimento voltado
para o saneamento radical dos costumes políticos no Brasil. Alguém, com o juízo
no lugar, acredita nesta nota de Temer, Gilmar, Eunício e Maia: “Esse debate
não busca apagar o passado, mas olhar com resolução para o futuro, construindo
o sistema mais adequado aos tempos atuais e atendendo melhor aos desígnios de
nossa democracia e às expectativas de nosso povo” (http://goo.gl/A9ZHyq)? Esses senhores estão
sinceramente preocupados com a democracia e o povo?
Destaque-se que o caminho para a solução dos
principais problemas brasileiros não passa por “salvadores da pátria” (algum
iluminado pelos deuses ou “apolítico”, tipo Trump), produtos de marketing
político-eleitoral (como foi Collor no passado ou Dória no presente) ou
aprendizes de ditadores (como o caricato Jair Bolsonaro).
O único caminho factível, mesmo lento e
trabalhoso, reside na intervenção popular (não confundir com a tresloucada
intervenção militar). Somente a mobilização e conscientização populares, em
torno de medidas efetivamente transformadoras, mudará o Brasil. Trata-se de
atuação que não pode, nem deve, ser terceirizada (para representantes de
qualquer tipo ou líderes “esclarecidos”). A força motriz das mudanças de fundo,
sem prejuízo de combativos e comprometidos representantes e lideranças
políticas como seus instrumentos, deve estar centrada na cidadania ativa, no
protagonismo da atuação de cada cidadão nos mais variados espaços sociais.
É preciso ressaltar, ainda, que o mundo dos
políticos vai para a vitrine dos horrores e, ao atrair todas as atenções e
revoltas, deixa os interesses de fundo ocultos e protegidos. Para os
monumentais interesses socioeconômicos responsáveis por poderosos mecanismos
geradores de desigualdades e mazelas sociais de várias ordens é extremamente
conveniente que a grande maioria da sociedade atribua seus problemas e
dificuldades quase que exclusivamente aos vários tipos de corrupção
protagonizados pelos agentes eleitos.
Essas últimas considerações, postas de forma
mais abstrata, podem ser verificadas numa perspectiva mais concreta de um
grande tema do momento. O parlamentar, financiado pelas empresas da área de
previdência privada, votará com os interesses dos trabalhadores ou com os
interesses dessas organizações? Observe-se que a Reforma da Previdência,
profundamente polêmica quanto aos números envolvidos e visceralmente injusta
nas medidas a serem implementadas, viabilizará uma atuação em grande escala das
instituições financeiras privadas que: a) poderão administrar os fundos de
previdência dos servidores públicos e b) contratarão planos com trabalhadores
interessados em benefícios integrais (impraticáveis com as novas regras da
previdência). E mais. Tomando como referência as palavras do Ministro-Chefe da
Casa Civil, as bancadas da “base de sustentação” do governo participarão de um
debate sério sobre a situação da previdência e as propostas a serem
implementadas (quais e suas intensidades)? Ou, ao revés, trata-se de um jogo de
cena porque os votos parlamentares já foram “comprados” na arena fisiológica do
toma-lá-dá-cá? Nessa última linha, cabe perguntar: o governo
Temer-Padilha-Meirelles utiliza o fisiologismo mais rasteiro como instrumento
para proteger, defender e realizar os interesses populares (dos trabalhadores)?
“Deixando de lado os entretantos e indo direto aos finalmentes”,
como dizia Odorico, na arena da grande política institucional de âmbito
nacional, é preciso identificar a ligação entre interesses socioeconômicos,
medidas transformadoras da realidade numa perspectiva democrática e popular e a
atuação política voltada para implementar essas últimas. Decididamente, a ação
política de cada cidadão, individual e coletivamente, precisa ir além, muito
além, da execração, inclusive eleitoral, dos debochistas de plantão.
17 de março de 2017
*Aldemario Araujo Castro é advogado, mestre em
Direito, procurador da Fazenda Nacional, professor da Universidade Católica de
Brasília