Do resistir.info
por Prabhat
Patnaik [*]
O professor Amartya Sen no seu novo livro Collective Choice and Social Welfare ,
que é uma versão consideravelmente ampliada e actualizada do seu livro de 1970
com o mesmo título, enfatiza que a democracia deve ser entendida como
"governo através da discussão". A ideia de democracia ser
"governo através da discussão" pertence realmente a John Stuart Mill,
embora esta frase particular tenha sido cunhada por Walter Bagehot. O apelo da
ideia está no facto de que se decisões governamentais forem tomadas após
deliberações públicas, então a sua opacidade desaparece. Associada esta ideia
está um estreitamento do fosso entre aqueles que "governam" e aqueles
que são "governados".
Tal estreitamente é a essência do fortalecimento do povo.
Eleger um governo a cada cerca de cinco anos não fortalece realmente o povo; o
seu fortalecimento decorre de ser capaz de influenciar a acção do governo e ele
só pode fazer isso quando tal acção é antecedida por extensa discussão pública
na qual possa participar.
Implícita nesta noção está naturalmente a crença de que o povo
como um todo possa participar significativamente da discussão pública sobre a
política do governo, que tal discussão não possa permanecer confinada apenas a
certos "peritos". Isto exige educação pública e, não
surpreendentemente, uma das marcas características de todos os regimes
opressivos é ao mesmo temponegar acesso à educação ao povo como um
todo e então utilizar o próprio facto da sua falta de educação
para negar-lhe qualquer papel na tomada de decisões, com base em que as
questões a serem decididas estão além da sua compreensão. A concepção de
"governo através da discussão" exige tanto educação pública como
participação generalizada do público nas discussões, na base das quais decisões
políticas deveriam ser tomadas.
A premissa epistemológica básica de que os povos são
perfeitamente capazes de participar significativamente em discussões sobre
questões políticas que afectam suas vidas, desde naturalmente que a educação e
informação não lhes seja recusada, é comum tanto a certas correntes liberais como
à esquerda. A diferença real entre elas levanta-se quanto à incompatibilidade
entre o que pode ser imprecisamente chamado "as estruturas" da actual
sociedade capitalista e a instituição de um "governo pela discussão".
A diferença pode não estar tanto no facto desta
incompatibilidade como nas implicações deste facto: enquanto
todas as versões do liberalismo que reconhecem esta incompatibilidade
sustentariam no entanto que as "estruturas" da sociedade capitalista
sãomaleáveis, a esquerda sustentaria que estas
"estruturas" são resistentes e que ultrapassar a sua
resistência exige não pressão mas sim transformação social,
isto é, uma transcendência destas estruturas e portanto da sociedade que é por
elas caracterizada e sua substituição por uma sociedade alternativa a
qual realmente torne possível o "governo através da discussão", ou a
democracia real que ultrapassa a opacidade da tomada de decisão.
Deixem-me dar um exemplo para esclarecer este ponto. Na
Grécia houve discussão pública significativa, mesmo um referendo, sobre a
questão das "medidas de austeridade" impostas pela "troika"
de instituições financeiras. A maioria esmagadora da sociedade foi contra tais
medidas, mas eliminá-las exigia concessões a serem feitas por esta
"troika", isto é, pelo capital financeiro cuja base está além das
fronteiras gregas. E finalmente a vontade do capital financeiro prevaleceu
sobre os desejos do povo grego, de modo que as drásticas "medidas de
austeridade" continuaram mesmo sob o governo Syriza que fora eleito
precisamente com base na promessa de que as eliminaria. Isto é um exemplo de
"governo através da discussão" sendo minado pela vontade da finança,
isto é, de um consenso entre o povo ser derrotado pelo poder das
"estruturas" capitalistas.
Mas isto deve acontecer sempre? Houve duas questões bastante
diferentes envolvidas no caso grego. A primeira foi o facto de que enquanto o
Estado grego era um Estado-nação, o capital financeiro que confrontou a Grécia
era a finança globalizada. Ele não estava sob a jurisdição do Estado grego, o
qual não podia portanto impor sobre ele os desejos do povo grego. Este facto é
uma consequência da globalização e dá à finança no mundo de hoje um poder
imenso sobre países que permanece dentro do turbilhão da finança globalizada –
e aqueles países que pudessem optar sair deste turbilhão enfrentariam severa
oposição da finança globalizada. Isto acontece porque qualquer derrogação
limita a área de operação da finança, restringindo seus lucros, e coloca também
uma ameaça ao seu futuro no caso de outros também escolherem a derrogação.
O segundo é o facto de que mesmo na ausência desta
contradição "global-nacional" há uma oposição básica entre os
interesses da finança e aqueles dos povos que já não podem mais tolerar tal
"austeridade". Esta oposição teria estado presente mesmo se o capital
financeiro que insistia sobre tal austeridade estivesse totalmente baseado na
Grécia e portanto, nominalmente, dentro da jurisdição do Estado grego. E esta
oposição teria estado ali mesmo se a discussão pública que ocorreu na Grécia e
produziu um consenso contra a "austeridade" se houvesse generalizado
a um cenário mais vasto do que a própria Grécia e produzido um consenso
semelhante contra a austeridade entre o público europeu (ou mesmo do mundo)
como um todo, contra o capital financeiro pan-europeu (ou mesmo global). (Na
verdade Amartya Sen, consciente da dicotomia "global-nacional" que
adquiriu tal pertinência no contexto da globalização, sugere que a discussão
pública também deveria assumir um carácter cada vez mais internacional, uma
sugestão que já surgira em escritos de Adam Smith)..
Se, digamos, dentro de um país particular, o consenso entre o
povo é favorável a medidas que vão parcialmente contra os interesses do capital
financeiro, então isto afectaria a chamada "confiança dos
investidores", a qual por sua vez provocaria a queda do investimento dos
capitalistas, causando recessão e desemprego. Se o Estado não desfizer a medida
que leva a tal desenlace, o que significaria ou Estado trair o
resultado da discussão pública ou o resultado da própria discussão pública
mudar por causa da resistência do capital financeiro (o que em ambos os casos
implicaria uma retirada do consenso anterior), então terá de aguentar a pressão
e ele próprio empreender maior investimento através do sector público. Tal
investimento público acrescido pode por sua vez afectar adversamente ainda mais
decisões de investimento dos capitalistas, exigindo mais uma vez a intervenção
do investimento público e assim por diante, levando em última análise a uma
transcendência do sistema.
Mas muito antes de uma tal sequência económica conducente a
uma transcendência do sistema tivesse sido estabelecida
"pacificamente" teria havido tentativas não tão pacíficas do capital
financeiro tanto para sabotar discussões públicas genuínas como para assegurar
que o Estado não lhes prestasse atenção. Antes de o resultado da discussão
pública chocasse adversamente com a finança, a finança teria dado passos para
anular este resultado. (E, não é preciso dizer, quando as implicações da
globalização, na forma de dicotomias agravadas do "global-local", são
sobrepostas a este quadro, a tendência em direcção a esta anulação tornar-se-ia
infinitamente mais forte).
Tudo isto certamente pode não acontecer como a sequela de
apenas um resultado da discussão pública, o qual, no caso que temos discutido,
relaciona-se com a reversão de "medidas de austeridade". Mas se
estamos a pensar no "governo através da discussão" então a
resistência das "estruturas" do capitalismo torna-se um obstáculo
perene para a democracia assim entendida. A crença de que não é este o caso, e
de que um "equilíbrio" pode ser alcançado a qualquer nível envolvendo
alguma coexistência da propriedade capitalista juntamente com intervenção do
Estado em consideração ao resultado da discussão pública, equivale a uma crença
na maleabilidade das "estruturas".
Esta é a crença que o keynesianismo, uma doutrina
essencialmente liberal, tem entretido. Mas o triunfo do capitalismo neoliberal
e a "reversão" da administração da procura keynesiana, até o ponto em
que "finança saudável" e "responsabilidade orçamental"
estão agora a ser exigidos mesmo em meio a uma crise, dá credibilidade à
perspectiva da esquerda ao invés da perspectiva liberal.
Contudo, há aqui uma
questão mais profunda. Vamos supor para argumentar que a transcendência do
capitalismo não é necessária para efectivar a democracia tal como visualizada
pelo professor Sen. Vamos assumir, para começar, que o Estado sob a pressão da
opinião pública empreende certas medidas que são resistidas pelo capital; o que
tenho argumentado acima é que ultrapassar tal resistência implicaria uma
escalada da intervenção do Estado, mas vamos assumir que tal escalada não
precisa ser um processo persistente e que após alguma escalada um novo
"equilíbrio" pode ser encontrado em que nenhumas novas escaladas se
tornem necessárias.
Mas a intervenção deve ser escalada pelo menos até àquele
ponto. Tipicamente, entretanto, mesmo antes daquele ponto ser alcançado, a
intervenção cessa porque os nervos dos "reformadores" falham e
procura-se que o resultado da discussão pública seja feito sob medida de modo a
ajustar-se a tal pusilanimidade. Ao invés de a discussão pública influenciar a
política, os limites percebidos da política são estabelecidos para impactar o resultado
da discussão pública.
Isto de facto é o que o "reformismo" realmente representa.
A diferença entre "reformismo" e "revolucionarismo" repousa
não no facto de que um quer "reformas" enquanto o outro não as quer
(pondo a sua vista só sobre uma revolução); ela repousa no facto de que os
primeiros recuam das reformas quando as coisas se tornam difíceis, ao passo que
os últimos permanecem comprometidos com as reformas. O governo Kerensky recuou
da [palavra de ordem] "terra, paz e pão"; a Revolução Bolchevique não
o fez. E nisto está a diferença.
A caracterização do professor Sen de democracia como
"governo através da discussão" é importante. As
"estruturas" constituem um impedimento para isto. O ponto não é uma
questão abstracta sobre se reformas exigidas pela tal
"discussão" podem ou não ter êxito dentro do sistema capitalista; o
ponto é a questão concreta de persistir com reformas. A
revolução de acordo com a análise acima é o resultado de um compromisso
persistente por reformas.
28/Fevereiro/2017
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