Domingo, 9 de abril de 2017
Camila Boehm - da Agência Brasil
Uma investigação da história de centenas de indígenas mortos
durante a ditadura militar no Brasil, de 1964 a 1985, foi transformada
em livro pelo jornalista Rubens Valente, que durante um ano entrevistou
80 pessoas, entre índios, sertanistas, missionários e indigenistas para
construir o relato.
Lançado na última semana na capital paulista, o livro Os fuzis e as flechas – A história de sangue e resistência indígenas na ditadura
traz à tona registros inéditos de erros e omissões que levaram a
tragédias sanitárias durante a construção de grandes obras do período
militar, como a Rodovia Transamazônica.
“Em 1991, 1992, eu estive
em uma área de uma etnia que se chamava Ofaié-Xavante. E lá eles me
contaram que tinham sido transferidos pelos militares em um caminhão e
haviam sido despejados lá no Pantanal, a 600 quilômetros dali [de seu
território original]. Lembro que essa história me marcou muito, porque
mostrou que havia uma coisa a ser contada nessa relação de índios com a
ditadura, como eles sofreram impactos nesse período”, contou o
jornalista. Em viagens a outras aldeias desde os anos 1980, Valente
conta ter ouvido relatos semelhantes.
“Em 1982, minha família
mudou para Dourados, em Mato Grosso do Sul. Eu sou do Paraná. E lá em
Dourados existe a maior aldeia indígena urbana, que vive naquela região.
Então foi o primeiro contato que eu tive com os indígenas no país,
quando eu tinha 12 anos, no final da ditadura. E a partir de então eu
comecei a pesquisar o tema”, contou. O jornalista começou a colecionar
notícias, histórias, livros e estudos sobre o assunto.
Indígenas isolados
Segundo
Valente, houve vários métodos de controle e de enfrentamento dos
militares em relação aos índios. Na Região Amazônica, estavam as
comunidades mais isoladas, que não tinham sido contatadas e, na época,
eram chamadas de hostis ou arredias.
“O regime militar
desencadeia um processo de ocupação da Amazônia, um processo que
envolvia obras, como estradas – principalmente a Transamazônica –,
envolvia hidrelétricas e envolvia a criação de núcleos de colonos, de
trabalhadores rurais. Esses colonos que vinham a reboque desses projetos
de desenvolvimento”, disse. Tudo isso, segundo o autor, “da noite para o
dia”, sem um plano organizado com grande estrutura sanitária e médica
para os povos tradicionais da região.
“Foi um plano executado
assim às pressas, conforme o relato dos próprios sobreviventes, e que
encontravam essas populações desassistidas e despreparadas em relação
aos vírus que os brancos vinham trazendo. Isso que causou inúmeras
mortes, centenas de mortos. E, aliado a isso, começou a haver o que eu
chamo de deportações dentro do próprio do país. Eram grupos inteiros
tirados de um lugar e colocados em outro.”
Valente contou a
história de um grupo Xavante retirado da fazenda Suiá-missú e levado
para uma outra área da mesma etnia, chamada São Marcos. “O cálculo é que
morreram de 100 a 120 índios apenas nessa operação. A força aérea
transportou esse índios de uma área para outra área de avião e lá eles
morreram porque não havia um plano de atendimento a essa população que
havia chegado recentemente ali. Eu pude entrevistar sobreviventes que
enterraram esses corpos e fizeram covas coletivas, corpos que foram
enterrados com tratores, porque eram tantos corpos. É um típico caso de
um erro de entendimento da questão indígena”, disse. Segundo o autor,
histórias de deslocamentos como essa se repetiram várias vezes.
Construção da BR-174
Um
dos casos considerados mais graves por Valente está relacionado à
construção da rodovia BR-174, conhecida como Manaus–Boa Vista, que
atravessou o território indígena da etnia Waimiri-Atroari e colocou os
índios em contato com trabalhadores, na década de 1970. “O cálculo mais
modesto indica 240 mortos só nesse caso. A mortandade ocorreu de 1974
até por volta de 1977”, disse. “Eu procurei amarrar esses episódios e
mostrar para o leitor um panorama do que ocorreu e a ideia de que havia
uma lógica por trás de tudo isso, uma lógica militar de ocupação da
Amazônia.”
Reparação
Para o autor, a
principal conclusão de sua pesquisa é a dificuldade do Estado brasileiro
em reconhecer essas mortes e de pedir desculpas pelo que ocorreu. “Em
2014, a Comissão Nacional da Verdade aprovou um capítulo destinado aos
povos indígenas, e esse capítulo indicava a necessidade de um pedido de
desculpas por parte do governo brasileiro. Um pedido de desculpas pelo
que aconteceu com os índios. E até o momento, já se vão três anos, não
houve sequer o reconhecimento, sequer um pedido desculpas, quanto mais
alguma forma de reparação desses danos.”
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