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(Millôr Fernandes)

sábado, 29 de abril de 2017

O DESMONTE: A desconstituição ética, moral, cultural e institucional do Estado

Sábado, 29 de abril de 2017
acrostico
 Crédito da Imagem: André Valias
Le Monde Diplomatique
por: José Antonio Moroni
A era Temer, porta-voz do 1%, de elites imediatistas, racistas, machistas, sexistas, lesbo-homofóbicas e patrimonialistas, é a rápida desconstrução, institucional e cultural, da ideia de justiça social que referenciava nosso Estado de bem-estar social. Este era frágil, incompleto, imperfeito, mas vinha progressivamente se consolidando desde a Constituição de 1988

Com o tempo fica desnudada, inclusive para setores da sociedade que entraram na onda de “todos contra a corrupção”, a verdadeira natureza do golpe que sofremos em 2016. Um golpe que articulou setores da institucionalidade (Parlamento, Judiciário e Executivo), partidos políticos, mídia, Igrejas, setores empresariais e “movimentos de rua”. Lembrando que, com início em 1989, esse foi o maior período histórico que vivemos sem golpes, aqui entendido como governo eleito terminando seu mandato. Houve no período o impedimento do presidente Collor, com comprovado crime de responsabilidade. O golpe demonstra que a elite brasileira não tem nenhum apreço pela democracia, mesmo a formal, nem respeito aos resultados eleitorais.



Mafalda, personagem do cartunista Quino, cai na risada com a definição que democracia é o governo em que o povo exerce a soberania. O riso de Mafalda é o riso irônico e de espanto de muitos. Riso de espanto das classes populares, que sabem que sua vontade pouco conta nesse jogo em que a soberania popular não tem lugar. Riso irônico das elites, nada democráticas, que a vivem como instrumento de perpetuação no poder e de seus privilégios. E, quando isso não acontece, rebusca o mesmo formato de sempre, golpe de Estado. Houve uma época em que se precisava dos quartéis; hoje não, basta articular os interesses das castas incrustadas nos aparatos estatais, com interesses ideológicos, políticos e econômicos de setores da sociedade. A leitura do golpe das chamadas classes C e D, conforme pesquisa do Data Popular, foi que era briga da elite, disputa de poder. Realmente o povo sabe das coisas.


Apesar dos limites de nossos processos democráticos e dos poucos avanços que tivemos nos últimos anos no sentido de termos um sistema político alicerçado na soberania popular e de construção de políticas públicas realmente emancipatórias, houve um reconhecimento institucional de sujeitos tradicionalmente “esquecidos” pelo Estado e pelos governos. Esse reconhecimento não foi por acaso, mas fruto de lutas e organização desses sujeitos nas últimas décadas, para não falar séculos. Basta lembrar a luta dos quilombos, dos povos indígenas, das comunidades LGBT, dos jovens e das mulheres.


O golpe precisava deslegitimar esses sujeitos, suas lutas e demandas. Não é à toa que uma das primeiras medidas do governo golpista foi a extinção ou o esvaziamento de estruturas do Estado que possibilitavam certo tensionamento entre esses sujeitos e a definição das políticas públicas. O que melhor espelha isso é a extinção dos ministérios dos Direitos Humanos, da Igualdade Racial, das Políticas para as Mulheres, do Desenvolvimento Agrário; o fim do Ministério da Previdência Social (quem precisa de previdência é a classe trabalhadora); a militarização da questão indígena e o esvaziamento dos espaços de interlocução com a comunidade LGBT e as juventudes. Um momento desses precisa de uma foto, para ficar registrado para a eternidade. A captura foi feita no dia da usurpação do poder. Quem aparece na imagem são todos homens brancos, proprietários, herdeiros do poder, que no Brasil é hereditário e vitalício.


No entanto, o processo de “reconhecimento” desses sujeitos na cena pública e política não foi concluído. O golpe veio também para interromper esse processo. Interessante aqui fazer uma análise curta sobre a composição das manifestações contra o golpe. Majoritariamente, elas eram formadas por mulheres, jovens das periferias, negros e negras, comunidade LGBT, sem-teto e sem-terra. Por que isso? Porque justamente esses segmentos foram aqueles capazes de pressionar o governo para colocar em prática políticas que minimamente atendiam às suas demandas. Em outras palavras, foram para a luta, para a disputa, e as políticas públicas foram construídas graças a essa pressão, assim como foram criados espaços públicos de disputas e de formação.


Por que será que os “beneficiários” do aumento real do salário mínimo (que não foi conectado com a luta do movimento sindical), do Bolsa Família, do Luz para Todos e das demais políticas públicas ficaram vendo, em sua maioria, a banda passar? Porque foram políticas aplicadas sem a participação popular nem mecanismos de formação e de apropriação da política. A política não era deles, era uma benesse do governo. Cito novamente pesquisa do Data Popular que revelou que 53% dos entrevistados identificavam a melhoria de sua vida ao seu esforço; 24%, à fé religiosa; e apenas 5%, a uma ação governamental. E não podemos aqui cair numa explicação simplista, de que o governo não soube comunicar; na verdade, o governo não soube governar com o povo (nem estamos falando aqui de o povo ser o poder).


Lógico que a deslegitimação do nosso já frágil Estado de bem-estar social precisa passar pelo elemento de classe também: o ataque às leis trabalhistas, ao sistema de seguridade social, ao Bolsa Família, aos direitos dos povos indígenas e aos programas de fortalecimento da agricultura familiar e camponesa tem esse objetivo. Do ponto de vista político, trata-se da destruição das esquerdas, do campo popular e de qualquer possibilidade de alguma transformação política, econômica, social, cultural, ambiental. Não podemos esquecer os ataques à agenda civilizatória, à união civil entre pessoas do mesmo sexo, à descriminalização do aborto, ao Estado laico, à educação plural, às políticas afirmativas, às políticas contra a homofobia, contra o armamento da sociedade etc. Saímos de aprendizes de um Estado de direito para pós-graduados em Estado de exceção (ou será que nunca saímos desse lugar?).


Dados do próprio governo, citados por Telma Maranhão, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), mostram uma redução de 35% do orçamento comparando os anos de 2015 e 2016 nas políticas de direitos humanos, mulheres, igualdade racial, LGBT. O que era pouco se tornou invisível.


No que se refere ao Bolsa Família, para esses governantes era necessário reforçar o preconceito que pobre não quer trabalhar, que pobre frauda os benefícios para tirar vantagem de tudo (como se a lei de Gérson – levar vantagem em tudo – não fosse o modus operandi das elites). Em novembro de 2016, o governo Temer cortou 1,1 milhão de beneficiários do Bolsa Família (469 mil cancelados e 654 mil bloqueados). Isso foi comunicado de modo a reforçar o estereótipo de que o pobre é pobre porque é preguiçoso. Acontece que o Bolsa Família sempre teve mecanismos de avaliação (alguns rígidos e burocráticos demais) para a permanência ou não no programa. Cancelamentos e bloqueios eram rotinas do programa.


O Alerta Social, articulação de ativistas e acadêmicos, com o mote “Qual direito você perdeu hoje?”, fez um levantamento dos principais direitos perdidos ou ameaçados no governo Temer. A lista é longa. Selecionamos alguns:


Democracia: interrompido o mais longo período histórico de respeito ao voto popular, 27 anos. Em 126 anos de República, tivemos 36 presidentes; apenas doze eleitos diretamente terminaram seu mandato. De 1926 até hoje, a proporção é ainda pior – de 25 presidentes, apenas cinco eleitos pelo voto popular concluíram seu mandato: Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek, FHC, Lula e Dilma (primeiro mandato). Isso só confirma a tese de que as elites brasileiras não têm nenhum apreço pelo voto popular e recorrem sistematicamente a golpes de Estado para impor seus interesses. O golpe que colocou Temer no poder segue essa tradição.


Ajuste fiscal: o chamado ajuste fiscal, que começou no governo Dilma, é uma estratégia para fazer a conta ser paga pela base da pirâmide. Central nisso é a Emenda Constitucional n. 95 (EC 95), que congelou por vinte anos os gastos públicos, principalmente os gastos sociais, incluindo os previdenciários. Congelar gastos públicos por vinte anos é congelar o futuro de uma geração inteira. Até a fatídica aprovação dessa emenda constitucional, recursos para a saúde e a educação eram vinculados, isto é, tinha percentual fixo do orçamento. Após a aprovação, os gastos são corrigidos segundo a inflação do ano anterior. Segundo estudos, se esse critério estivesse valendo para 2015, a saúde teria uma perda de recursos da ordem de 32%, e a educação, de 70%. Sem mencionar que os percentuais constitucionais para a educação e a saúde já vinham sendo desrespeitados desde o governo FHC por meio da Desvinculação das Receitas da União, medida essa mantida pelos governos Lula e Dilma. Isso tudo para quê? Para pagar a dívida pública, um mecanismo de repasse de recursos públicos para as elites que aplicam no mercado financeiro. Hoje, mais de 50% do “nosso” orçamento público é comprometido com o pagamento da dívida. O Estado brasileiro cobra impostos dos mais pobres para distribuir para os mais ricos, e um dos mecanismos para fazer isso é o pagamento da dívida pública.


Políticas indigenistas: mesmo reconhecendo que nos governos Lula e Dilma pouco se avançou, no mandato Temer o retrocesso é gritante. Além do desmonte da já fragilizada Fundação Nacional do Índio (Funai), da tentativa de nomear um general para a presidência do órgão, do apoio ao Projeto de Emenda Constitucional n. 215 (PEC 215), que retira o poder do Executivo para a demarcação das terras indígenas, e do desmonte da política da saúde indígena, o orçamento da Funai para 2017 é o menor em dez anos. Na verdade, a PEC 215 inviabiliza qualquer nova demarcação e abre possibilidades de rever demarcações já realizadas. A proposta de emenda equipara as terras tradicionais às propriedades rurais, podendo ser arrendadas, divididas e receber “investimentos” do agronegócio e das mineradoras.


Agricultura familiar e reforma agrária: a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e sua incorporação ao Ministério de Desenvolvimento Social, além de ser um retrocesso na luta pela reforma agrária, é uma evidente opção ideológica e política pelo agronegócio. A concepção de que as políticas voltadas para a agricultura familiar devem ser concebidas no âmbito do social, apartado do econômico, é de um modelo de desenvolvimento arcaico, que faz o Brasil retroceder para o início do século passado. O governo Temer, nesse período, retirou o desenvolvimento agrário da Câmara de Comércio Exterior (lógico, só quem pode exportar é o agronegócio), acabou com a Diretoria de Políticas para as Mulheres Rurais e extinguiu a Ouvidoria Agrária, que tinha como tarefa a negociação de conflitos no campo. Como se não bastasse, extinguiu a Coordenação Geral de Cooperação Humanitária e Combate à Fome do Itamaraty, que tinha a atribuição de construir a agenda contra a fome no mundo.


Segundo estudos do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em 2016 o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) da agricultura familiar para a alimentação escolar, hospitais e etc. gastou R$ 428 milhões. O orçamento para 2017 prevê apenas R$ 330 milhões, o que equivale a uma perda de 28%.


No que diz respeito à reforma agrária, o governo encaminhou a Medida Provisória 759/2016 (MP 759) com o objetivo basicamente de liberar terras para o mercado e enfraquecer os movimentos sociais que lutam por uma reforma agrária popular. Libera terras para o mercado quando concede títulos de propriedade para os assentados individualmente, permitindo a venda dos imóveis. Enfraquece os movimentos quando prevê abertura de editais amplos para as candidaturas a receber terras.


Reforma trabalhista: com o argumento de modernizar as relações de trabalho (quem não se lembra do discurso de modernização da era Collor?), o governo enviou projeto de lei em regime de urgência, que deve ser aprovado no primeiro semestre deste ano. Uma das propostas é que a jornada de trabalho diária possa ser de até 12 horas. Outra é que o que for acordado entre as empresas e sindicatos fica valendo acima da legislação. Na prática, isso acaba com a Consolidação das Leis de Trabalho (CLT). Num país com um sindicalismo ainda frágil, parte dele atendendo aos interesses dos patrões, os acordos dificilmente irão além dos direitos já conquistados na CLT. Em outras palavras, os acordos vão retirar direitos.


Educação: para além do corte de recursos, há grandes atrasos com as discussões puxadas pelos adeptos da escola sem partido (proposta educacional político-pedagógica conservadora que se apresenta como antipartidária, mas na verdade é representante do “pensamento único”, equivalente ao partido único nas escolas); a reforma do ensino médio, editada por medida provisória, que retoma a velha divisão entre educação para ricos e cursos técnicos voltados para a demanda da economia, para a empregabilidade dos mais pobres; o afunilamento do acesso ao ensino superior, com o encolhimento das universidades públicas e o enfraquecimento dos Institutos Federais de Educação; e, por fim, a fragilização da formação de professores e a retirada de disciplinas críticas do currículo escolar. Além disso, há um desprezo ao conhecimento produzido de modo descentralizado pelas diferentes regiões do país, ao estipular uma base nacional curricular comum, com 60% de conteúdo fixo e outros 40% variáveis – como todos os exames são nacionais, contudo, o que será solicitado neles terá como referência os 60%.


Vê-se, pois, que a era Temer, porta-voz do 1%, de elites imediatistas, racistas, machistas, sexistas, lesbo-homofóbicas e patrimonialistas, é a rápida desconstrução, institucional e cultural, da ideia de justiça social que referenciava nosso Estado de bem-estar social. Este era frágil, incompleto, imperfeito, mas vinha progressivamente se consolidando desde a Constituição de 1988. Os tempos que nos aguardam são sombrios. Os retrocessos já se fazem sentir: o próprio Banco Mundial,1 aliado eterno dessas elites, já anunciou o aumento da pobreza no Brasil. Mais do que nunca, urge a união das forças populares em torno de uma agenda de radicalização da democracia e de inclusão socioambiental dos 99%!


Como podemos perceber, o golpe teve endereço e CEP certos: os direitos dos trabalhadores, das mulheres, das juventudes periféricas, da população negra, dos povos indígenas, da comunidade LGBT. Mas podemos ter a certeza de que os trabalhadores e as trabalhadoras não vão retornar ao chão de fábrica, que as mulheres não vão retornar à cozinha, que os jovens não vão retornar ao “gueto” e vão ocupar as vagas das universidades públicas, que a comunidade LGBT não vai voltar para o armário e que o povo negro não vai retornar à senzala.



*José Antônio Moroni é do Colegiado de Gestão do Inesc.


{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 116  – março de 2017}

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