Segunda, 15 de maio de 2017
Alana Gandra - Repórter da Agência Brasil
O governo brasileiro terá prazo de um ano, até o
dia 11 de maio de 2018, para reabrir as investigações sobre duas
chacinas ocorridas em 1994 e 1995 na comunidade Nova Brasília, no
Complexo do Alemão, zona norte da capital fluminense, durante operações
policiais. Também terá que prestar indenização a cerca de 80 pessoas. Em
cada chacina, foram mortos 13 jovens. Também há denúncia de tortura e
estupros. A sentença foi divulgada na última sexta-feira (11) pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), instituição judicial
autônoma da Organização dos Estados Americanos (OEA).
A Corte
IDH condenou o Estado brasileiro por não garantir a realização de
justiça no Caso Nova Brasília, atribuindo-lhe responsabilidade
internacional. Essa é a primeira sentença em que o Brasil é condenado
pela corte da OEA em relação à violência policial. O processo sobre o Caso Cosme Rosa Genoveva e Outros versus Brasil, conhecido como Caso Nova Brasília, chegou à Corte IDH em maio de 2015, depois de 15 anos tramitando na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A ação teve como peticionários o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) e o Instituto de Estudos da Religião (Iser), representantes das vítimas.
Os inquéritos relacionados às duas chacinas foram
enviados ao Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) e arquivados.
Atendendo à recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
também órgão da OEA, o MPRJ desarquivou em 2012 o inquérito da chacina
de 1995 e, no ano seguinte, o do caso anterior. Em maio de 2013, o MPRJ
denunciou seis policiais, sendo quatro civis e dois militares, pelas 13
mortes de 1994. Em 2015, o MP decidiu arquivar o inquérito sobre a
chacina de 1995, por entender que as mortes foram decorrentes de
tiroteio.
Por meio de nota, o Ministério dos Direitos Humanos
informou que “o Estado brasileiro reconhece a competência obrigatória da
Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e, por meio de
coordenação entre o Ministério das Relações Exteriores, o Ministério dos
Direitos Humanos e a Advocacia-Geral da União, informará à CIDH do
cumprimento da sentença, dentro do prazo previsto”. Procurado pela Agência Brasil, o governo fluminense respondeu que não tem posicionamento sobre a decisão da Corte da OEA.
Decisões
A
sentença da OEA destaca que não houve imparcialidade nas investigações.
Analisa que “antes de investigar e corroborar a conduta policial, em
muitas das investigações se realiza uma investigação a respeito do
perfil da vítima falecida e se encerra a investigação por considerar que
era um possível criminoso”.
A Corte Interamericana ordenou ao
Estado brasileiro que conduza de forma eficaz a investigação sobre os
fatos ocorridos na chacina de 1994, visando a identificar e punir os
responsáveis, o mesmo sucedendo em relação à incursão policial naquela
favela, em 1995. Nos dois procedimentos, indicou que os familiares das
vítimas devem ter assegurado “o pleno acesso e a capacidade de agir” em
todas as etapas da investigação.
Cabe também ao Estado brasileiro
avaliar se os fatos ligados às duas chacinas devem ser deslocados para a
competência da Justiça Federal, por intermédio do Procurador-Geral da
República. As autoridades nacionais devem ainda incluir perspectiva de
gênero nas investigações e nos processos penais relativos às acusações
de violência sexual, com a condução de linhas de investigação
específicas por funcionários capacitados em casos similares. Todas as
pessoas envolvidas, incluindo encarregados da investigação e do processo
penal, testemunhas, peritos e familiares das vítimas têm de ter a
segurança garantida.
Outras medidas
Entre
as políticas públicas ordenadas para garantir o aumento da eficiência
das investigações e responsabilização de agentes do Estado pelas
violações de direitos humanos, a decisão da Corte é para que, em casos
em que policiais apareçam como possíveis acusados, a investigação seja
delegada a um órgão independente e fora da força policial envolvida no
incidente.
As expressões oposição e resistência devem ser
retiradas dos registros de homicídios resultantes de intervenção
policial. Os autos de resistência devem ser eliminados como forma de
registro e procedimento. O governo brasileiro deve adotar medidas que
permitam que vítimas de delitos ou seus familiares participem de maneira
efetiva e formal da investigação criminal efetuada pela polícia ou pelo
Ministério Público.
Outra ordem é no sentido de o governo
estabelecer metas e políticas de redução da letalidade e da violência
policial, em especial no estado do Rio de Janeiro, além de publicar um
relatório anual com dados referentes às mortes resultantes de operações
policiais em todos os estados do país. O Brasil terá, ainda, de realizar
um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional
pelas mortes e pelo abuso sexual para as famílias e as vítimas, uma vez
que já reconheceu os fatos perante a Corte. Terá também de pagar
indenização compensatória no prazo de 12 meses para cerca de 80 pessoas.
O valor da indenização é estimado em torno de US$ 2,5 milhões [cerca de
R$ 7,7 milhões].
Impactos da sentença
O pesquisador do Iser Pedro Strozenberg disse hoje (15) à Agência Brasil
que a sentença tem três objetivos. O primeiro, a reparação das vítimas
das chacinas. O segundo, a responsabilização das autoridades que
deveriam ter assumido a condição de responder por violações ocorridas. O
terceiro objetivo é a não repetição desse tipo de atos.
“Ela
impõe ao Estado cumprir as decisões. Não é uma recomendação; é uma
decisão. Ela impõe ao Estado ações nesses três campos: ela repara as
vítimas, ela reconhece que foram mortos pelo Estado, e responsabiliza o
Estado pela omissão de justiça, por não fazer justiça”, acentuou
Strozenberg.
Na avaliação da diretora para o programa do Cejil no Brasil, Beatriz Affonso, ficou claro para a Corte da OEA que existe no Brasil uma violência cometida por agentes de segurança pública contra negros e negras pobres que vivem nas periferias das grandes cidades. “A Corte entendeu que o problema de violência no Brasil é estrutural de direitos humanos e que as violações têm um foco direcionado aos jovens negros e negras das comunidades pobres”, confirmou.
Na avaliação da diretora para o programa do Cejil no Brasil, Beatriz Affonso, ficou claro para a Corte da OEA que existe no Brasil uma violência cometida por agentes de segurança pública contra negros e negras pobres que vivem nas periferias das grandes cidades. “A Corte entendeu que o problema de violência no Brasil é estrutural de direitos humanos e que as violações têm um foco direcionado aos jovens negros e negras das comunidades pobres”, confirmou.
Para o
pesquisador do Iser, a sentença tem o aspecto de aprimoramento dos meios
de investigação, de apuração. Além de responsabilizar o Estado, ela tem
o sentido de reconhecer os direitos não realizados pelas vítimas das
duas chacinas. Como se trata de uma decisão internacional, o governo
federal é acionado e deve articular com os demais entes federativos o
cumprimento da sentença.
Strozenberg ressaltou que o cumprimento
da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA vai exigir
mudanças legislativas e administrativas, realização de cursos, atos
simbólicos como a instalação de placas na comunidade, entre outros. “Tem
uma série de consequências que têm de ser implementadas no período de
12 meses”.
De outro lado, Beatriz Affonso esclareceu que o prazo
de um ano é para que o governo brasileiro comece a cumprir as ordens
recebidas. “Porque tem algumas medidas, como, por exemplo, criar uma lei
para que as vítimas possam acompanhar as investigações, que é um
processo legislativo que não é rápido. Daqui a um ano, a Corte vai
querer saber se o Estado brasileiro pagou as indenizações às famílias e
se estão em andamento as investigações que ela ordenou que ele fizesse:
reabrisse a investigação da segunda chacina, o abuso sexual da primeira
chacina e desse andamento com lisura e devida diligência ao processo da
primeira chacina”.
A diretora do Cejil disse que a expectativa é
que o Estado possa cumprir rapidamente as decisões da Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Ela espera que a atual secretária de
Direitos Humanos da Presidência da República, Flávia Piovesan, possa
atuar com celeridade e de forma diligente para ter início o cumprimento
da sentença.
Chacinas
No dia 18 de
outubro de 1994, as polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro
realizaram uma incursão na favela Nova Brasília, no Complexo do Alemão,
com auxílio de helicóptero, na qual 13 jovens, a maioria negros, foram
executados. Na operação, de acordo com as denúncias formuladas, três
mulheres, duas delas adolescentes, teriam sido torturadas e violentadas
sexualmente. Em 14 de novembro de 1994, uma comissão especial de
sindicância instaurada para fornecer dados adicionais ao inquérito
policial apurou indícios de execuções sumárias dos jovens e recolheu
provas da violência sexual e tortura das adolescentes.
Na mesma
comunidade, outra operação foi realizada no dia 8 de maio de 1995, como
resultado de uma suposta denúncia anônima, segundo informação do Cejil e
do Iser. Mais 13 jovens foram mortos na ação, que contou com auxílio de
dois helicópteros. “Apesar de a polícia ter alegado a existência de
intenso confronto, vizinhos testemunharam para a imprensa que os jovens
saíram da casa em posição de rendição e foram alvejados pelo helicóptero
com tiros nas cabeças e tórax”, diz comunicado divulgado à imprensa
pelas duas organizações não governamentais (ONGs).
Cerca de 120
policiais participaram das duas operações. As ONGs denunciam que não
foram respeitados pelas autoridades os protocolos de devida diligência e
que provas foram destruídas, sem que perícias importantes fossem
efetuadas para identificar autores e a situação em que ocorreram as
mortes. “Um exemplo é o fato de os corpos terem sido removidos do local e
os exames de balística e residuográficos nos agentes policiais nunca
terem sido colhidos”, acrescenta o relatório.
Os homicídios foram
registrados como confrontos e autos de resistência, o que isentou os
policiais da responsabilidade pelas mortes. “Foi construída uma
narrativa que os isentava de responsabilidade pelas mortes e sequer
houve investigações para comprovar se ocorrera ou não uso excessivo de
força letal ou execuções sumárias. As vítimas foram registradas como
suspeitos de crime de resistência e os inquéritos se concentravam em
tentar demonstrar seus envolvimentos com o tráfico de drogas”,
informaram as ONGs.
No comunicado, as duas ONG's sublinharam,
porém, que na primeira chacina, em 1994, o relatório da Comissão
Especial de Sindicância instaurada pelo então governador fluminense Nilo
Batista indicou terem sido encontradas provas de que houve execuções
sumárias entre as mortes.